2 MIL HACKERS

Vivi Duarte mostra a milhares de jovens como usar o 'sistema' para quebrar tabus sobre gênero, raça e negócios

Vanessa Fajardo Colaboração para Ecoa Amanda Perobelli/UOL

Durante a infância, Vivi Duarte, 41, morou em um cortiço na Freguesia do Ó, bairro da zona norte de São Paulo. O mesmo quintal era dividido por oito famílias. Mãe e avó protagonizam as lembranças mais fortes dessa época. Para sustentar a casa onde, além de Vivi, moravam mais duas crianças, elas vendiam roupas, doces e o que mais precisassem. "Minha vó sempre falava: 'vendemos o almoço para pagar a janta'. Quando minha mãe desanimava e dava uma caída, ela sempre inventava algo: 'vamos lá, agora podemos vender coxinha'". Já o pai, conta Vivi, nunca foi muito presente.

Nessa fase da vida, Vivi também descobriu como os sonhos podem ser sabotados. Tudo gira sobre onde se nasce e cresce e qual a cor da pele. Vivi queria ser jornalista; a irmã, gerente de banco. Quando as duas brincavam sobre o futuro, ensaiando para suas profissões, vira e mexe ouviam de algum vizinho:

Sua mãe e sua vó mal conseguem pagar o aluguel e vocês querendo fazer faculdade. Isso não é para vocês. Parem de ficar sonhando tão alto porque o tombo é grande

Mas o DNA empreendedor, o exemplo das mulheres que a cercavam e, ao mesmo tempo, o entendimento de que o caminho é bem mais longo para quem nasce sem privilégios ajudaram Vivi a "hackear o sistema", expressão que a jornalista gosta de usar para reforçar sua trajetória. A irmã de Vivi, a propósito, virou executiva da área bancária.

Amanda Perobelli/UOL
Amanda Perobelli/UOL

Planos e sonhos

Vivi se formou em jornalismo e, em 2010, criou a própria empresa, o Plano Feminino. A proposta era trazer diversidade de raça e gênero à propaganda, área na qual passou a trabalhar. Em 2016, ela fundou o Plano de Menina, braço social da companhia e que já empoderou aproximadamente 2.000 meninas da periferia em dez estados.

As meninas atendidas pelo Plano têm entre 18 e 19 anos e moram em áreas vulneráveis. Elas participam de uma jornada de workshops de seis meses de duração, acompanhadas por uma mentora e professoras voluntárias. São aulas de autoestima, consumo consciente e moda, relacionamento, bullying e racismo e, no fim, empreendedorismo e educação financeira. Na edição de 2020, a novidade será uma imersão de dois meses em empresas como LinkedIn, Unilever, PepsiCo e Heineken — clientes do Plano Feminino.

Vivi quer que essas jovens sonhem e tenham planos para si — assim como ela tinha na infância, apesar das dificuldades. Após três anos de projeto, algumas meninas estão trabalhando em empresas multinacionais — uma delas, Luz Ericka, faz graduação em relações internacionais, estágio em empresa holandesa e tem pela frente um intercâmbio de três meses na Holanda. Outro ponto que Vivi destaca como prova de conscientização sobre prioridades e informação das jovens é o baixo índice de gravidez só 1% delas engravidaram após participarem do programa.

A menina entra no projeto não se reconhecendo como potência e sai com a visão de futuro maior em relação às que não participam. Esse é o resultado de uma pesquisa que a gente aplicou com a Unilever. Nossas meninas saem mais preparadas para hackear esse sistema, conscientes de questões cidadãs, sociedade, privilégios e dos obstáculos que terão para conseguir furar essa bolha

Vivi Duarte

Vivi diz que a primeira barreira do projeto foi lidar com a falta da autoestima das garotas, que mal conseguiam participar de um exercício chamado "teste do espelho", no qual tinham de se olhar e falar sobre seus pontos fortes e fracos.

"Era muito pesado as coisas que a gente ouvia delas. Casos de bullying, racismo, preconceito e machismo. As pessoas vão invalidando os pequenos sonhos que essas meninas têm, falando coisas como 'o seu futuro é igual ao da sua mãe,' A mãe está presa e a avó fala para a menina: 'você nasceu para ser igual a sua mãe, você não vai muito longe'", lembra.

Hora do Instituto

Consolidado, o Plano de Menina está em vias de se tornar um instituto, formato que o habilita a captar recursos via editais e a ter um orçamento próprio ? hoje o programa é mantido por aportes de clientes do Plano Feminino, que destinam verba para missões específicas.

"A gente teve um aporte da Seda durante três anos para a missão de expansão. Fomos para dez estados, crescemos, desenvolvemos metodologia, contratamos psicólogos, assistente social. Cada mentora de cada estado ganha por hora para poder ser embaixadora local", afirma Vivi.

Para os próximos cinco anos, o plano da empreendedora é ter uma sede fixa em São Paulo, que ofereça desde cursos de idiomas até atendimento psicológico às meninas.

Amanda Perobelli/UOL Amanda Perobelli/UOL

'Negros não entram em campanha premium'

O Plano Feminino surgiu depois de uma série de tropeços e muita insistência. A vida profissional de Vivi começou no Paraná. Ela foi aprovada num processo seletivo e se mudou para lá, onde morava parte da família do marido — Vivi se casou aos 23 anos, e aos 39 se tornou avó.

Foi no Paraná que ela conseguiu uma bolsa de estudos para estudar jornalismo. Emendou MBA em marketing de consumo e especializou-se em posicionamento de marcas. Conquistou espaço no mercado e chegou a ocupar cargos de gerência de marketing em empresas como Unimed e Bunge. Então veio a inquietação.

Comecei a questionar o quanto tinha de consumidores e consumidoras em potencial que a propaganda e o marketing não levavam em conta. Um percentual enorme de pessoas negras que consomem, de mulheres de diversos corpos pedindo visibilidade, que não eram consideradas. É claro que meus gestores já sabiam disso, só invalidaram o que pensavam e diziam coisas do tipo: 'Vivi, não colocamos negros nessa campanha porque é um produto premium, precisa de um valor agregado, uma pessoa branca, heteronormativa'

Vivi Duarte

Esse discurso foi o gatilho para que a jornalista questionasse o seu trabalho, as campanhas e o seu papel. "Virei uma problematizadora dentro das empresas em que eu trabalhava, porque todos os lugares em que eu levava esse recorte de gênero, de representatividade, havia um silenciamento. Levava esses insights para mesa e eram sempre invalidados. Não entendia que era machismo, achava que era uma linha criativa minha que não estava funcionando", afirma.

O modelo de negócios proposto por ela e recusado pelas empresas em que trabalhava, quem diria, virou o mote da sua. Com o lançamento do Plano Feminino, Vivi passou a produzir conteúdo na internet, com colunas sobre raça, gênero e diversidade, mas faliu antes de conquistar o primeiro cliente, que bancou um projeto de R$ 1,5 milhão.

"Eu estava quebrada mesmo. Tinha funcionário levando Macbook embora em troca de pagamento. Mas consegui emplacar um projeto grande, o 'Anas e Marias: mulheres comuns que inspiram', patrocinado pela Seda, que foi a primeira marca de shampoo a colocar mulheres reais, que não fossem a Gisele Bündchen, para falar a histórias delas", lembra.

Depois desse projeto, o trabalhou fluiu e a clientela apareceu — chegaram marcas como Brilhante, Heineken, Pepsico, LG, Jeep e Samsung.

Amanda Perobelli/UOL

'Mata pulgas' imaginário

O empreendedorismo quase compulsório que existia em sua casa também a inspirou. Vivi lembra com graça de uma história de quando tinha nove anos. Ela "desenvolveu uma poção mágica" com plantas e álcool que, segundo seu imaginário, era capaz de matar pulgas. Resolveu oferecer para os vizinhos. Ela diz que não só conseguiu vender o produto, como conquistou feedbacks positivos.

"Eu bati nas casas que tinha gato e cachorro, já ia no meu target e dizia: desinfeta todo o ambiente e ainda mata pulga. Uma vizinha, a dona Cleusa, comprou e ainda disse para minha mãe que funcionou", afirma.

Quando chegou em casa com o montinho de dinheiro em mãos, feliz com a rentabilidade do negócio, teve de lidar com o furor da sua mãe, que a fez devolver cada centavo. Não teve feedback positivo que a convencesse a deixar a garota embolsar o lucro. "Ela me disse: 'você pode vender o que quiser, mas sem inventar, enganar as pessoas. Você sabe se isso funciona mesmo?' Tive de passar de casa em casa devolvendo o dinheiro. Uma lição forte, não!?", lembra.

Negra, eu?

Vivi chegou para entrevista com os cabelos presos, usando óculos grandes, que escondiam a pele sem maquiagem. "Acordei às 5h30, errei o horário e cheguei uma hora mais cedo para uma reunião", disse. Passou no banheiro e, em pouco tempo, voltou maquiada, com os cabelos soltos: "Ainda bem que tinha esse cremão aqui na bolsa", disse.

Os cachos são novidade para Vivi, assim como o fato de ser reconhecer como mulher negra, o que só aconteceu quando ela tinha 36 anos.

"Meu bisavô era negro, mas meu pai é super polacão, branco, com olho azul. Minha mãe é uma mistura de negros com libaneses, tem a pele clara, sempre alisou o cabelo, não tem traços negroides. Eu sempre ouvi que era morena jambo, por causa do 'biso' negro. Sempre alisei o cabelo e nunca ninguém me falou 'você é negra'", afirma.

Quem deu a "notícia" a Vivi foi a sócia Eliane Dias [advogada e empresária dos Racionais MC´s], depois de ela ter sido convidada a participar de um TED de Mulheres Negras. "Eliane chegou em mim e disse: 'você sabe que é negra, né? Eu acho estranho porque circula em muitos lugares de poder e poderia levar nosso nome, mas você fala da mulher negra em terceira pessoa e isso me deixa com um ponto de interrogação'", conta.

Amanda Perobelli/UOL Amanda Perobelli/UOL

Meninos vêm aí

Os meninos também têm vez no campo de trabalho de Vivi. Há mais de um ano está em andamento um projeto-piloto com 60 meninos da região de Pirituba. Eles ajudam a formatar o que será o Plano de Menino, a ser implementado a partir deste ano. A proposta é trabalhar questões como masculinidade tóxica, ajudá-los a "sonhar grande, além de ser jogador de futebol", e acima de tudo fazê-los se enxergar como potência.

"Se a gente não conversar com os meninos, não conseguimos mudar a realidade das meninas. Quanto mais elas vão se empoderando, mais revoltados eles ficam, porque não entendem do que elas estão falando", acredita.

Para Vivi, o menino que cresce sem oportunidade, em um ambiente nocivo, reproduz os padrões vividos. "Ele se torna o cara abusador, que vai bater na menina, ser tóxico, ser um macho violento. Então a gente quer desde a puberdade trabalhar e ressignificar essa violência que eles aprendem desde pequenos", afirma.

Amanda Perobelli/UOL Amanda Perobelli/UOL

Veja também

Divulgação/Fraternidade sem Fronteiras

"Me senti sujo"

Wagner Moura proporcionou banho e muito mais a crianças da África após choque

Ler mais
Pryscilla K./UOL

Ciência Divertida

Como Carlla Vicna fez jovens da rede pública de Manaus se apaixonarem por astronomia

Ler mais
Pablo Saborido/UOL

Dona da Feira Preta

Como Adriana Barbosa superou demissão e reverteu a lógica da "grana preta em bolsos brancos"

Ler mais
Topo