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Tony Marlon

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Racionais na Netflix: o documento mais importante do ano é um filme

Racionais Mc"s - Reprodução
Racionais Mc's Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

18/11/2022 06h00

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Logo no começo do filme Racionais: Das Ruas de São Paulo para o Mundo, KL Jay é perguntado se o grupo faz algum trabalho social, no que responde: Aqui ó, apontando para um CD. Esse é o trabalho social. A música que muda a atitude das pessoas. Como sempre, o Kleber Simões foi cirúrgico no que traz ao mundo. Sorte a nossa.

Escrito e dirigido pela cineasta Juliana Vicente, o documentário chegou ao catálogo da Netflix na quarta-feira, 16, e já pode ser lido como um dos mais importantes documentos históricos do nosso tempo. Isso porque o grupo da capital paulista transformou para dentro, mas também para fora das periferias e favelas brasileiras. Isso sem a Internet de hoje. Disputaram mentes e corações, como se diz por aí, em todos os cantos da sociedade. Suas letras viraram leitura obrigatória no vestibular. Três décadas depois, viraram filme.

Mas foi nos becos e vielas que os Racionais fizeram uma revolução social e cultural sem precedentes, que a gente sempre soube e reconheceu. Brilhantemente, Juliana costurou tudo isso em quase duas horas de depoimentos e imagens inéditas de arquivo para espalhar no mundo inteiro. A luta contra o racismo e a violência de classe alcançou os ouvidos de cada grupo de jovens parados nas esquinas, ao som inconfundível de algum sampler do Jorge Ben. Nos últimos 30 anos, ninguém sintetizou melhor o Brasil do que os Racionais.

Outro dia, num encontro com adolescentes e jovens da Vila dos Pescadores, em Cubatão, no litoral de São Paulo, perguntei se sabiam me explicar o que era uma crônica. Entre olhares de curiosidade, interesse e nenhuma resposta de volta, eu perguntei de novo: quem aqui já escutou Um Homem na Estrada ou Fim de Semana no Parque, e pronto. Alguns olhares se iluminaram, mãos se levantaram. E expliquei que tudo aquilo ali é uma crônica. E que tem coisas que a gente não sabe que sabe, até que um dia a gente nomeia. E vocês sabem, quem dá o nome às coisas acumula poder. Não deixem que resumam vocês e seus bairros às ausências. Espero que estejam pensando sobre tudo até hoje.

Uma das grandes contribuições do grupo foi isso: suas músicas ofereceram uma nova paisagem à imaginação coletiva sobre as periferias e favelas da zona sul, do Brasil inteiro. Se antes os becos e vielas eram vistos pelas lentes de quem aparecia por lá de vez em quando, espalhando a parte como todo, recheando o debate público de estereótipo e reducionismo, com as letras do grupo a história foi contada em primeira pessoa.

Os Racionais usaram a arte para reivindicar a humanidade das ruas de terra e dos barracos de pau, e isso mudou tudo. Pergunte a quem alfabetizou o olhar escutando cada faixa de Raio X do Brasil que você irá perceber. Vivo dizendo por aí que eles foram o primeiro coletivo de comunicação que pude conhecer, a primeira política pública que alcançou onde morávamos.

O documentário também faz um trabalho justo de posicionar o grupo como grandes artistas e construtores de cultura, o que são. Basta um olhar atento ao depoimento de Mano Brown sobre o conceito de Nada Como Um Dia após o Outro Dia para querer revisitar faixa por faixa. Navegar para entender as camadas. Também reconhece e destaca os papéis essenciais de Meire de Jesus e Eliane Dias, grandes responsáveis em levar o grupo ao lugar que ele ocupa hoje na indústria musical e na cultura do país.

Faltava, para mim, um documento que convidasse a sociedade brasileira a observar os Racionais e o Movimento Hip Hop numa perspectiva histórica - cultural, social e artística. Com Racionais: Das Ruas de São Paulo para o Mundo, agora não falta mais. Sorte a nossa.