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Tony Marlon

Sobre um suposto novo futuro, as antigas mesmas pessoas falando

Tony Marlon

15/05/2020 12h18

Não pense você que eu não acredite que os mais velhos, aqueles e aquelas que abriram caminho, não sejam importantes nas cada vez mais populares rodas que conversam o futuro pós-Covid-19.

Apesar de pensar que precisamos, ainda e muito, saber como superá-lo agora, no presente.

A questão não é a idade de quem anda debatendo, mas o monopólio da opinião sobre o que nos espera do outro lado de toda essa história. Se essa for mesmo o que muitas especialistas andam narrando, uma dolorosa chance de renascer o mundo e as estruturas desiguais e violentas que nos trouxeram até este colapso, seguimos demonstrando que não aprendemos absolutamente nada como sociedade.

Nos debates internet afora, seja sobre o que tudo isso representa para a humanidade hoje , seja sobre quais lições podemos tirar para frente, as mesmas pessoas, vindas dos mesmos lugares, amigas dos mesmos amigos, falando essencialmente as mesmas coisas que sempre falaram.

Nos últimos anos, uma parte do Brasil passou a desacreditar da ciência, da academia, dos especialistas, de todas as instituições, pactuadas socialmente como confiáveis em todo mundo. Inventaram uma realidade paralela com suas próprias instituições, seus próprios especialistas, sua própria ética e transformaram isso em um projeto político.

Por favor, não me confunda com este lado da história. Detergente continua sendo bom para deixar as panelas limpas e o coronavírus não se cura com automedicação.

Ando meditando sobre quem continua a ter o poder, quase que exclusivo, de imaginar o futuro que todo mundo merece. Se a sociedade em todos os seus aspectos está entrando em colapso, e vai pedir de nós esperança e habilidades de transição, além de responsabilidade coletiva e novos rituais de cuidado, não faz sentido algum que homens e mulheres negros, de periferias e favelas, LGBTQ's, quilombolas e povos indígenas e da floresta, pessoas do campo, das áreas rurais, continuem a não serem consideradas vozes legítimas em todo e qualquer debate sobre a, dita, reconstrução da sociedade pós COVID.

Ou pior que isso, bem pior que isso: que continuem a serem colocadas apenas como depoimentos, não como especialistas, pessoas produtoras de conhecimento, em mesas temáticas assim: o que as periferias têm feito para superar a pandemia?

Vai por mim, o Joaquim Melo, do Banco Palmas, a Ítala Herta, do Vale do Dendê e a Adriana Barbosa, da PretaHub, tem mais contribuições para os próximos 10 anos do Brasil que o atual Ministro da Economia. São elas e ele que estão construindo na prática este futuro que ainda está sendo debatido no campo das ideias por uma multidão dos mesmos.

Ao longo dessa semana fui anotando num caderninho, acompanhei sete mesas. Em cinco delas só havia homens debatendo. Em seis apenas homens e mulheres brancas debatendo. E em sete nenhuma voz de povos originários.

Para falar com todo mundo é preciso que todo mundo possa falar.

Eu sei, você pode estar imaginando que isso é mimimi de gente vitimista. Anda na moda escorregar as conversas difíceis para respostas fáceis que chegam pelo Whatsapp. Mas aqui, entre amigos, ninguém vai nos escutar, pode abrir o coração comigo: não é muito estranho, para dizer o mínimo, que o país de maioria negra e de mulheres continue a ser discutido quase exclusivamente por homens, homens brancos, homens brancos cis que moram do sudeste?

Não perca de vista a voz e a escrita da Jurema Werneck, que diz: nossos passos vêm de longe. Quem nos arrastou até aqui dificilmente nos levará à Terra Prometida. Ou a sociedade brasileira entende isso de uma vez por todas, ou a COVID-19 vai ser apenas um vírus histórico que matou as mesmas pessoas que sempre morreram antes da hora, simplesmente por serem quem são.