Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
As mudanças no clima já estão pesando na conta de luz da sua casa; entenda
Imagine separar quase metade da sua renda mensal apenas para pagar a conta de luz e gás. Essa é a realidade de aproximadamente 46% das famílias brasileiras que têm renda média mensal de até um salário mínimo ou que pertencem à classe D/E. As informações, levantados pelo Ipec/iCS em 2021, também mostram que em 22% dos domicílios a solução adotada para conseguir pagar a conta de luz em suas casas foi diminuir ou deixar de comprar alimentos básicos.
Tal dado revela que, embora mais de 99% da população brasileira tenha um domicílio conectado ao sistema de distribuição de energia elétrica, só isso não basta para garantir eficiência, segurança, saúde, bem-estar e direito à moradia digna. É preciso qualificar os números.
Essa realidade, que podemos chamar de pobreza energética, pode ficar ainda pior com as mudanças do clima no Brasil. O estudo Vulnerabilidades do setor elétrico brasileiro frente à crise climática e propostas de adaptação, lançado pelo ClimaInfo em nome da Coalizão Energia Limpa, mostra o porquê.
Crise hídrica = crise energética
Quase dois terços da produção de energia elétrica no Brasil vem das usinas hidrelétricas, o que representa em torno de 10% da produção mundial. Essas usinas dependem das chuvas para operarem. Os regimes de chuvas, por sua vez, são cada vez mais alterados devido às mudanças climáticas.
Ou seja, o relatório mostra que a crise hídrica é igual a crise energética em nosso país. Basta olhar para a história e ver como sofremos nossas piores secas na última década e, em 2021, a pior crise hídrica dos últimos 90 anos.
Um exemplo é a seca de 2014/2015 na região Sudeste, na qual várias bacias hidrográficas foram fortemente afetadas e permaneceram em estado crítico até o ano passado, causando redução da disponibilidade hídrica. Em Minas Gerais, a Usina Hidrelétrica de Três Marias registrou um volume útil de água de apenas 4,1% perante sua capacidade máxima.
Por isso, o estudo alerta que não é mais aconselhável trabalhar com o histórico dos regimes de chuvas para gerir as hidrelétricas e planejar o sistema energético brasileiro, já que isso significa esperar um volume de chuva médio que pode não ocorrer devido às mudanças climáticas.
Mas as respostas para o problema não devem piorar ainda mais a situação. Devemos criar mecanismos de resiliência climática sem sujar nossa matriz - algo que aconteceu recentemente, em 2022, durante a privatização da Eletrobras.
A lei conta com uma emenda, chamada de "jabuti", que pretende forçar a contratação de dezenas de usinas termelétricas, que produzem energia queimando combustíveis fósseis (tudo o que os cientistas do clima alertam para não continuarmos a fazer).
Essas usinas têm custo estimado em R$ 52 bilhões até 2036, apenas no que diz respeito à operação, e podem representar 10% de aumento na tarifa de energia.
Dessa forma, cria-se uma contradição cíclica: investe-se na emissão de gases de efeito estufa (GEE) via queima de combustíveis fósseis com as termelétricas; estes GEEs aumentam a temperatura do planeta e intensificam a crise climática; a crise climática impacta no regime de chuvas do Brasil, que por sua vez é um país majoritariamente baseado na hidroeletricidade; e o acesso a energia elétrica limpa e de qualidade fica mais distante.
A conta não fecha.
Caminhos para a justiça energética
Um dos principais apontamentos do estudo é que não estamos lidando com isso da forma que deveríamos no âmbito das políticas públicas.
Por isso, é preciso revogar os jabutis da Lei 14.182/2021, a já citada Lei de Privatização da Eletrobras; e revisar as termelétricas que foram contratadas de forma emergencial em 2021 quando o país estava sob risco de racionamento, mas que acumula vários contratos não cumpridos ainda em 2023.
Entretanto, a principal recomendação do relatório é que precisamos diversificar a nossa matriz elétrica por meio de um sistema hidro-solar-eólico, o que nos permitiria lidar com as mudanças climáticas de forma mais eficiente e segura.
Embora isto esteja em curso, temos espaço para avançar ainda mais. São elencados três passos para atingir tal apontamento:
o mapeamento de vulnerabilidades do setor
traçar um plano de resiliência e adaptação
construir uma maior reserva de potência no sistema interligado e um maior armazenamento de energia.
Essa transformação deve acompanhar, também, seu modo de implementação. Não é justiça energética se uma energia renovável viola os direitos humanos e territoriais de comunidades.
Os processos de aprovação e licenciamentos para projetos de energia, sejam quais forem, devem assegurar os direitos dos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses e demais povos que são afetados por eles, de modo a garantir a aplicação da consulta livre prévia e informada.
Fato é que as mudanças climáticas impactam de maneira desigual as populações, e, caso o Brasil não inclua tais variáveis do clima no planejamento e na gestão elétrica, elas irão intensificar ainda mais a pobreza energética que já é realidade para milhares de brasileiros, tornando a conta de luz mais cara e menos eficiente.
Ter acesso a uma energia popular e de qualidade é um direito humano, mas que sem um compromisso sólido não será alcançado universalmente.
E quem sofre com isso continua no escuro em dose dupla.
*Bárbara Poerner é jornalista socioambiental e repórter freelancer. Atualmente, integra a equipe do ClimaInfo e EmpoderaClima.
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