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M.M. Izidoro

Qual é a necessidade que a gente tem de mentir?

31/10/2020 04h00

Imagina que um dia você e sua família estão em casa e você ouve alguém arrombando o portão da frente. Você, que está perto da porta de entrada, só tem tempo de mandar sua família se esconder antes que o invasor entre e avisa que veio matar seu cônjuge. Ele olha em volta e não vê mais ninguém e te pergunta onde estão os outros.

O que você responderia para ele?

Muito provavelmente você mentiria.

Diria que não tem mais ninguém ali, que todos fugiram ou que você se separou da pessoa há tempos e nunca mais falou com ela.

Mas para o filósofo Immanuel Kant, você deveria fazer o oposto e falar a verdade. Para ele, a verdade absoluta é a única coisa que importa e mentir em qualquer circunstância é moralmente errado e um crime da pior espécie. Assim, se um assassino te perguntar onde está o amor da sua vida, você tem o dever moral de falar a verdade, pois mentir te tornaria tão ruim quanto o assassino.

Sim, pode parecer uma loucura essa ideia que Kant coloca - e vários outros filósofos já escreveram calhamaços tentando explicar por que Kant está certo ou errado - mas o que me fascina nessa história é que ela abre uma discussão importante que é o que é verdade e o que é mentira.

Não faz muito tempo, o termo "fake news" entrou nas nossas vidas. Sempre soubemos que havia jornais e jornalistas que criavam fatos de maneiras que não necessariamente eram verídicas, mas com o advento das redes sociais e o botão de like, isso parece ter virado como a indústria inteira funciona. Nesse momento eleitoral, em um dos momentos mais segregados da história ocidental, as fake news estão tomando conta de nossos feeds, grupos de mensagens e nossas conversas do dia a dia.

E cada vez que eu penso sobre isso tudo, tento entender o porquê de a gente mentir. Qual a necessidade que a gente tem de contar um fato de uma maneira que não foi ou de esconder alguma coisa de alguém?

Eu pessoalmente não tenho problemas com a mentira em si. Afinal, eu sou um mentiroso profissional. Meu trabalho é contar histórias, e histórias são desenhadas para te fazer sentir alguma coisa e para isso, eu preciso fabricar fatos e te enganar com o objetivo final de contar uma boa história (você acha mesmo que eu li a obra inteira do Kant e qualquer outro filósofo que questionou suas ideias?).

Em uma sociedade como a nossa, praticamente todas as ideias que vivemos são um tipo de mentira. A gente não precisa de dinheiro para sobreviver. Trabalhar não enobrece o homem. Você não precisa de um diploma para ser alguém. Esse corte de cabelo que tu copiou da revista não ficou bem no seu rosto.

Então por que a gente mente?

Da mesma maneira que a gente não diria onde está o amor da nossa vida para uma assassino que quer matá-lo, ou que a gente fala que o corte de cabelo ficou bom quando claramente não ficou, mentir quase sempre vem de um lugar de amor e aceitação.

Cada vez mais dá para ver que a gente quer estar certo, e não necessariamente aprender o que é certo. Queremos nos sentir bem. Queremos ser reconhecidos, queremos nos conectarmos com outras pessoas que enxergam o mundo como o nosso e depois dessa conexão, queremos protegê-las.

Quando você mente para o assassino, você está se sentindo bem que está protegendo quem você ama. Assim, como podemos fazer quando a gente fala que nada aconteceu na festa de fim de ano da firma, quando claramente aquela ida rapidinha ao banheiro de deficientes com aquele crush do outro departamento diz outra coisa. Muitas das nossas mentiras aparecem por que queremos proteger quem a gente ama de dor ou sofrimento. Ainda mais quando somos nós que podemos gerar essa dor e sofrimento.

O problema de mentir, não é a mentira em si. Mas é que ao se descobrir a mentira, a confiança acaba. A verdade pode doer, mas essa dor passa. Quando uma mentira é descoberta, e a confiança é quebrada, o peso e a dor de reconstruir essa relação são muito maiores.

E essa é a dor que parece que estamos todos sentindo. Muita gente mentiu para chegarmos até aqui. Políticos, chefes, professores, pais, amores e a gente mesmo. A gente acreditou em muitas dessas mentiras e nesse ponto que estamos não aguentamos mais. A gente perdeu a confiança em muitas das estruturas que seguravam nosso mundo de pé e ainda estamos com medo de que as novas estruturas possam fazer o mesmo com a gente.

Essas mentiras não nos machucaram, mas machucaram os próprios mentirosos. Por que agora vai ser um trabalho muito maior para a gente juntar esses caquinhos todos e reconstruir uma história coletiva baseada na verdade. Ou pelo menos guiada por ela.

Muitas vezes quando alguém quer desmerecer Kant, a pessoa troca o assassino por um nazista e a pessoa escondida por um judeu escondido. Quantas pessoas não foram salvas da morte certa nessa exata circunstância?

Mas mais do que ir contra Kant, eu acho que essa imagem o reforça. Por que um nazista só está indo atrás de um judeu por que mentiram para ele que os judeus eram mais fracos e precisavam morrer por isso. Num mundo onde a verdade impera, seria muito raro termos assassinos à nossa porta e poderíamos focar em outras "mentirinhas" do dia a dia, como falar que a comida salgada da mãe está uma delicia, que o seu pai não engordou na quarentena ou que você manja de filósofos alemães para escrever colunas em portais.