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Lia Assumpção

Onde os CDs vão para morrer?

Papa Francisco com CDs na mão - Reprodução/Twitter
Papa Francisco com CDs na mão Imagem: Reprodução/Twitter

Lia Assumpção

27/12/2020 04h00

Eu não sabia que CDs podiam ser reciclados. Mas são. Na verdade, desde que pesquiso coisas a respeito de reciclagem, tenho entendido que muita coisa pode ser reciclada, a coisa que pega mais é a logística de fazer chegar o que é reciclável onde ele de fato será reciclado. Apesar dessas descobertas, a conclusão ainda é a mesma: nem tudo que é reciclável é ou será efetivamente reciclado.

Mas queria muito fazer amizade com o moço da matéria que li a respeito de reciclagem de CDs, de onde tomei emprestado o título desta coluna. (Vai ficar puxado fazer amizade com ele, uma vez que ele mora lá longe, mas quem sabe, não é mesmo?). Bruce Bennett (é o nome dele) produzia CDs. Quando acabou o CD, teoricamente, acabou seu trabalho. Só que não, ao invés de produzí-los, ele passou a reciclá-los. Na verdade, enquanto produzia CDs, como ambientalista declarado, ele precisou aprender a descartar adequadamente lotes danificados. Quando a coisa começou a desandar, amplificou esse conhecimento. Mágico, não?

Quando foi criado, o CD foi inovador pois permitia que você pulasse faixas com apenas um toque, além de armazenar muito mais dados do que seus antecessores vinis e fitas cassete. Mas olha como a ascensão e queda foram rápidas: o CD entrou no mercado no início dos 1980, em 1984 a Sony lançou o discman que permitia que você levasse seus CDs pra passear por aí; iPod, que foi quem obsoletou o CD foi lançado em 2001. Vale dizer que o Sr. Bennet começou a reciclar os CDs danificados em 1988.

Isso me lembrou uma coisa que li na pesquisa sobre obsolescência programada. (Lembra do que é obsolescência programada? Aquela prática de trocar ao invés de consertar? Aquela que não é que você escolheu trocar e não consertar, mas não teve jeito mesmo? Eu, mesma, agora me deparei com o seguinte problema: sou designer, trabalho muito com imagens e meu computador é "vintage" — para usar o termo da Apple. O tratamento de imagens avançou num nível que as imagens são tão grandes e a resolução é tamanha que meu computador não está dando conta de ler. Ele fica lento. Muito lento. Eu sou paciente. Mas vi que o problema está logo ali. Já, já, não vou conseguir mais mantê-lo.)

Voltando: antes de as calculadoras existirem, existiam réguas transferidoras. Elas eram difíceis de usar, o que exigia quase uma profissão para quem soubesse usá-las. No momento em que calculadoras foram inventadas, as réguas tornaram-se obsoletas. Junto com as réguas, esses profissionais que sabiam usar as réguas ficaram automaticamente obsoletos também.

Que nem o moço do CD; quando eles deram lugar ao nosso querido streaming de todos os dias, o moço que fabricava a mídia reduziu radicalmente sua produção. No caso das calculadoras, muitas empresas que fabricavam réguas, passaram a fabricar calculadoras. Salvaram-se da obsolescência as indústrias, as pessoas não, vale dizer. No caso do meu amigo dos CD's, ele diz ter consciência de ter tornado obsoletos os gramofones ou pick-ups que o precederam, assim como o streaming tornou obsoleto seus CDs.

O processo de reciclagem de CD consiste em triturar as mini-bolachas, transformando-as em um pó branco e transparente "que brilha e se assemelha a grandes cristais de floco de neve grudados", diz a matéria. Ele pode ser usado para moldar peças de carro, materiais para construção, óculos e aqueles fios de impressoras 3D. A coisa é que pelo que o Sr. Bennet disse, esse não é um mercado muito ativo; então tem muito pouca gente que compra essa matéria-prima reciclada, ainda que ainda existam muitos CDs por aí sendo descartados todos os dias. Outro dado que eu não sabia é que, caso o CD vá parar num aterro sanitário, leva um milhão de anos para se decompor.

No mundo da obsolescência programada, há quem diga que a primeira grande troca de equipamentos se deu com a chegada da luz elétrica. As pessoas tinham um tanto de medo e curiosidade a respeito dessa nova tecnologia, mas pouco a pouco, todas acabaram por trocar seu ferro de passar roupa a carvão, por um que ligava na tomada e se encantaram com o rádio.

Saltos como esse estão sempre entre nós, pois a tecnologia sempre avança e não retrocede. Outro dia estava ouvindo um podcast que falava da próxima grande mudança que está pela frente - a tecnologia 5G - e lembrei desse moço do CD. Isso porque esses saltos geram efeitos colaterais inevitavelmente (muitas vezes em forma de lixo, outras tantas em forma de desemprego). E, no caso do moço do CD, quando todos estavam encantados com seus novos iPods, ele se preocupou com o "efeito colateral" do salto e aprendeu a reciclar CDs. Que tenha alguém pensando sobre isso também nesse nosso futuro próximo.


PS: Essa é minha última coluna em Ecoa. Cheguei aqui por causa de uma vitrola e me despeço falando de cds. Não poderia deixar de mencionar a coincidência do tema de hoje e do título do texto da semana passada ("Tudo é finito") com o fim que se aproximava. Não queria sair sem me despedir e nem sem agradecer a todos que entraram em contato comigo pelas redes sociais ou que deixaram comentários aqui. Muitos me fizeram pensar diferente ou ter vontade de saber mais sobre tantos assuntos. Saio com alguns pesares (não ter falado mais de café ou da Lina Bo Bardi), mas o maior deles, sem dúvida, é não ter escrito mais uma vez sobre economia do compartilhamento porque, seguindo uma recomendação deixada nos comentários, li o livro Uberização (também assisti ao documentário GIG) e, não só revi meus conceitos acerca do tema, como me decepcionei e me apavorei? Ainda acredito que o embrião da economia do compartilhamento venha do verbo compartilhar, que depois foi cooptado pelo "sistema". Acredito também que muitos embriões como esse estão por aí e torço para que não tenham o mesmo fim. Aliás, compartilhar é um verbo caro para mim e o que procurei fazer por aqui nesse tempo, foi um pouco isso: compartilhar experiências e pensamentos. No mais, agradeço minha amiga Giu que me fez esse convite maravilhosamente desafiador e ao Ecoa/Uol que me disponibilizou esse espaço semanal por pouco mais de um ano para, justamente, compartilhar e pensar junto a respeito de temas que julgo pertinentes a todos nós, como sociedade. Um beijo e até já, Lia.