Julián Fuks

Julián Fuks

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Memória ou invenção: de que são feitos os nossos sonhos?

De onde vêm os sonhos? O que são essas sombras e luzes que compõem em nossa mente estranhas imagens inexistentes, ora obscuras e turvas, ora de uma nitidez extraordinária? Sei que essas perguntas são velhas, que já alcançamos infinidade de respostas para elas, que a filosofia, a literatura, a psicanálise, a neurologia, já todas encontraram seu quinhão a dizer. Mas, não sei, há dias em que acordo com a sensação de que tudo ainda é insuficiente, como se o assombro de sonhar não tivesse sido alardeado o bastante, como se ainda devêssemos nos admirar com essa criação diária da psique, tão espantosa quanto banal.

Leio a respeito e descubro que o sonho pode não passar de uma forma um tanto caótica de memória, fragmentos de experiências que despontam sem sucessão nem lógica, a que só mais tarde damos a ordem de uma história. Nada de não-vivido, não-visto, não-aprendido ou não-pensado poderia ter lugar ali, espaço privilegiado da reencenação de um passado, recente ou antigo, conhecido ao extremo ou quase totalmente esquecido. A cada noite reviveríamos inúmeros momentos perdidos da nossa existência, numa vasta antologia íntima sem princípio nem fim — daí a ideia, cara a Borges, do sonho como uma modesta eternidade pessoal.

Mas há no sonho, como talvez em todo pensamento e toda linguagem, uma prática extensiva de deformação da experiência original. Freud o descreve com precisão: no sonho tudo se condensa, se desloca, se inverte, toda cronologia é ilusória, todo objeto se faz símbolo insondável. O que recordamos já não é recordação nenhuma, e sim recriação livre e anárquica. Aos poucos passamos, então, à noção contrária, de que o sonho só pode ser uma invenção, de que nada nele jamais tomou parte na realidade. Livre do corpo, no sonho, a alma brinca — Borges evoca Petrônio e atualiza sua palavra, propondo o sonho como brincadeira da mente, a mais antiga arte da humanidade.

Em todo caso já me canso de especular e de tomar ideias emprestadas, o que eu queria era contar o sonho de umas noites atrás, acho que o mais inventivo que já me coube sonhar. Num hotel luxuoso e decadente, deitado numa cama insensata em pleno saguão, vejo meu pai. Caminho até ele sem nenhuma emoção particular, me aproximo para conversar como se fosse algo corriqueiro, sem ainda ganhar consciência de sua morte. Ele tem nas mãos um jornal, e resolve me contar o artigo que acaba de ler, que nesse instante toma a totalidade de seus pensamentos, tal como costumava ser.

O artigo conta de um célebre dramaturgo comunista, ora Bertolt Brecht, ora estranhamente Orson Welles, convidado a visitar um hotel ainda mais luxuoso do que aquele, para que conheça a nova atração do saguão: uma monumental criação cenográfica, um imenso jogo de bonecos representando uma fábrica, uma estação ferroviária, uma mina de carvão. Brecht de fato se impressiona e pergunta de imediato: quem construiu tudo isso? Mas discorda da resposta que recebe: quem construiu aquilo não foi artista nenhum, ele rebate com impaciência, e sim os trabalhadores que ali se veem representados. E se põe a rearranjar os bonecos em manifestações e piquetes, a posicionar operários, ferroviários e mineiros numa grande revolta, a comandar com toda seriedade uma revolução de brinquedo.

Ouço a história com grande atenção, visualizando eu mesmo as imagens improváveis, e tudo aquilo também me entusiasma. Tomo o artigo das mãos do meu pai para conhecer mais detalhes e talvez para conferir o nome exato do personagem em questão, mas não é isso o que está escrito em suas palavras. Não há nada no jornal sobre dramaturgo nenhum, e toda a anedota só pode ser uma invenção do meu pai. Ainda estou no sonho, mas já me pergunto sobre a origem da história, sobre sua autoria e sua veracidade.

Súbito essas questões já não me importam e me dou conta de que meu pai está ao meu lado, de que estamos juntos de novo e ele acaba de me contar uma nova história. Estendo minha mão para afagar os seus cabelos, e perco meus dedos numa cabeleira mais vasta do que era a sua nos últimos anos. É bom voltar a tocá-lo, acariciar aqueles cabelos ainda que não sejam bem os seus. Mas meu pai me detém em pleno gesto. Segura o meu braço com firmeza e diz muito sério: Não, acabou. Acabou, repete, como se pedisse que eu respeitasse sua morte. Acabou, e com a força de sua voz eu acordo.

Ainda passo alguns instantes tomado por aquelas imagens, vendo o rosto severo do meu pai, sentindo sua mão a segurar o meu braço. Depois volto às indagações autorais, às dúvidas renitentes sobre o sonho e sua invenção, o sonho e sua lembrança. Meu pai terá alguma vez me contado algo assim, em tempo já esquecido, talvez na infância? Mas por que contaria uma história dessas a uma criança, que decerto não entenderia seu sentido, suas implicações e premissas? E como podia eu ter sonhado com aquele artigo sobre um dramaturgo de que sei tão pouco, se não me lembro de jamais ter ouvido nada parecido? De onde terei inventado uma cena dessas, eu que me sinto um autor quase desprovido de imaginação, infenso à fantasia?

Aqui encerro minhas interrogações. Fico com a vaga esperança de que algum leitor me diga de onde tirei essa história, que corrija suas deturpações e me passe um nome mais preciso. Assim o sonho deixaria de ser esse ato inventivo que faz com que eu desconheça a mim mesmo, deixaria de ser também desmemória, passando a pertencer à realidade. É à realidade, afinal, que o sonho parece me convocar. O fim do sonho, e meu pai faltante, querem me trazer de volta à penúria do real. Mas eu resisto, eu tento me aferrar à minha modesta eternidade pessoal, ali onde existo fora do tempo e ainda posso encontrar meu pai.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes