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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Adeus à crônica: sobre o fim silencioso e tímido de um gênero literário

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Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

05/08/2023 06h00

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Não, não me despeço, o leitor não se verá livre desta minha verborragia semanal, não ainda. Não sou eu que abandono a crônica, é a crônica que vai abandonando o mundo, a passo lento. Pouco a pouco ela definha, incapaz de seduzir algoritmos, vai sendo esquecida entre páginas bem mais urgentes, entre novidades eufóricas, entre ruidosas notícias. Vai calando a irrelevância que lhe é própria entre tantas palavras imprescindíveis. Acho que é isso: décadas depois de terem decretado sua crise, eis que a crônica se aproxima do fim, sem desespero nem cólera nem alarde, na timidez que lhe é característica.

Quanto mais horas passo lendo crônicas do passado, como fiz numa longa tarde de compromisso com a ineficácia, sob o sol cálido de um dia supostamente útil, quanto mais horas passo lendo crônicas do passado, eu dizia, mais percebo que não existe crônica no presente, que nosso mundo em estado crônico não a comporta. Seu tempo é outro, há um descompasso de ritmos. Devota da lentidão, apreciadora da indolência e da preguiça, a crônica já não resiste à velocidade, aos imperativos da produtividade, seja no trabalho, na diversão ou no vício. A crônica não sabe existir neste mundo alucinado que já não alucina. Sinto, sinto muito anunciar algo assim sobre um ente tão querido, mas é isso, a crônica está quase morta, contam-se os seus dias.

A morte da crônica é a morte da literatura em sua face cotidiana, da literatura mansa desprovida de ambições e ganâncias e cobiças. É a morte de um olhar discreto e franco sobre a vida, agora bem mais pálida, insossa, ignóbil, triste. O fim da crônica nos deixa quase reféns dos assuntos sérios e dos risos histriônicos, sem mais meios sorrisos, sem graças furtivas, e sem tampouco a melancolia vaga das palavras ainda não tão trágicas, só levemente infelizes. A agonia da crônica nos aparta dos acontecimentos mínimos, nos priva da imaginação e do devaneio tão bem nutridos pelos assuntos esquálidos. Nos deixa apenas na presunçosa companhia da ideia, ou, pior ainda, na extravagante presença da polêmica.

Mesmo esta crônica, esta pobre e frágil e nauseada crônica, repare como é feita de ideia. Onde está o homem a vagar pelas ruas e a vislumbrar a improvável cena que tudo ilumina, onde a mulher em seu mistério, onde o pássaro, o cavalo, o menino? Repare que já não disponho de personagens, já não disponho de sujeitos apenas entrevistos e então analisados até o limite, já não procuro examinar a estranheza dos estranhos e a comunidade dos comuns. Saiba, leitor, leitora, não se trata de falta de ideias, o problema é o excesso. Existo apenas na austeridade destes meus pensamentos, nos confins desta mente que não cessa, incessantemente abastecida de juízos.

Leitor, leitora, me perdoe por isso. Me perdoe por eu já não lhe oferecer anedota nenhuma, não lhe providenciar nenhum riso. Me perdoe, mas a culpa é sua. Eu não sei se lhe perdoo a pressa, a impaciência, a gravidade que você tenta compensar com uma busca obsessiva por uma distração fácil, um prazer mais imediato, mais garantido. A crônica já não lhe importa, eu entendo, só não perdoo. Não perdoo este abandono em que você me deixa, num mar de palavras inúteis que nada dizem, que só lamentam e se remoem de nostalgia por um tempo que nunca existiu.

Eu sei, o ressentimento que estou declarando é por um leitor que já não está aí. Restamos agora só nós, os ociosos, os folgazões, os vagais. Não sei se é nosso fim ou nosso triunfo definitivo: a entrega dos ociosos ao ócio, dos folgazões à folga, dos vagais ao vácuo. A crônica se aproxima do fim, em todo caso, e não quero que você que durou até aqui acabe saindo de mãos vazias. A você e a mim deixo um pequeno consolo, na forma de uma certeza especulativa. Que tudo aquilo que definha encontra sua estranha maneira de permanecer. Que todas as formas que morrem, o soneto, a pintura, o romance, ainda podem ser praticadas com liberdade e leveza, em absoluta paz, pelos sonhadores e os distraídos.

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