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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A arte ou a vida? Dilemas de um escritor entre as urgências do cotidiano

Gabriel García Márquez trabalha nos manuscritos de "Cem Anos de Solidão" - Guillermo Angulo/Harry Ransom Center/Divulgação
Gabriel García Márquez trabalha nos manuscritos de "Cem Anos de Solidão" Imagem: Guillermo Angulo/Harry Ransom Center/Divulgação

Colunista do UOL

25/06/2022 06h00

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Um dia Gabriel García Márquez trancou-se no quarto dos fundos de sua casa. Sentou-se à escrivaninha, como todos os dias, mas dessa vez se acomodou como nunca e não voltou a sair por dezoito meses. É ele quem exagera, quem conta ter juntado todo o dinheiro que pôde e deixado nas mãos de Mercedes, sua mulher, com o pedido de que não o incomodasse por nada durante o tempo incerto em que escreveria seu livro. Para os filhos, tornou-se um homem distante e frio, concentrado em algo incompreensível. Em seu próprio juízo, nunca fora tão sociável e alegre, nunca tão enérgico, como se nesse exato momento inventasse a literatura, como se em cada palavra sentisse a vida jorrar de seus dedos. Escreveu em absoluto isolamento seus "Cem anos de solidão", e então aceitou voltar ao mundo, à família, às pequenezas da existência.

Nunca escreverei um livro dessa maneira, a esta altura já sei, e não apenas porque me falte a capacidade superlativa de García Márquez, sua imaginação, sua verve, sua fluência. Nunca escreverei dessa maneira porque não consigo me subtrair ao mundo, porque não sou capaz de isolar um interesse único e fundamental em mim mesmo e anular todos os outros. Não o consigo, não o desejo, não o aceito. Alguma vez li essa história e admirei a convicção do grande romancista, seu compromisso inamovível com a escrita. Hoje a releio e lamento por sua mulher, por seus filhos pequenos, penso na casa em desordem, nas aflições financeiras, no silêncio que alguém talvez impusesse para não perturbar o artista. Contra mim, contra o sujeito que alguma vez fui, me desentendo dos imperativos da arte e penso só no corriqueiro, no intranscendente.

"O criador tem que ter uma obsessão fanática, nada deve se antepor a sua criação, ele deve sacrificar qualquer coisa por ela. Sem esse fanatismo não se pode fazer nada importante." É Ernesto Sabato quem vem reiterar um dos conselhos mais frequentes sobre o fazer literário, aparecendo assim para me assombrar, para me condenar à desimportância. Sei bem que nunca farei tamanho sacrifício, que nunca aceitarei subjugar a variedade da vida aos caprichos imperiosos de que pode sofrer um artista. Assimilo o argumento e respeito, conheço as vantagens da devoção, da disciplina, do individualismo. Entendo que tal grau de fanatismo pode ser imprescindível à grandeza de um escritor, mas sinto que é incondizente com a pessoa que quero ser, ao menos nos meus anseios mais serenos.

Não devo estar só nesse sentimento. Suspeito estar me deparando aqui com algo maior, com a grande incompatibilidade que existe entre os apelos do tempo presente e as demandas da produção artística, ou mesmo de toda ambição pessoal e criativa. O mundo em seu ruído nos convoca incessantemente, nos atrai com suas urgências, nos exige atenção constante. O mundo em sua ruína clama por participação e compromisso, e já aprendemos que cada um deve somar seu parco quinhão à ação coletiva, para que haja alguma ação, e não apatia. Tudo parece necessário neste momento, e o sujeito que quer se isolar, que quer produzir em solidão algo de atemporal e íntimo, pode acabar acometido por uma ansiedade sem limites.

Vivemos um tempo de dispersão, em que o foco e a concentração tão propícios à criação se tornam uma raridade. É fato que parte da nossa atenção se deixa consumir por irrelevâncias e banalidades, mas há também aquilo de importante que exige nosso cuidado cotidiano, e negligenciá-lo em nome da ambição artística não parece solução nenhuma. Talvez já não sejamos capazes de nos desligar do mundo, de calar sua infinidade de vozes e ouvir apenas a nossa, porque no fundo não o desejamos. Já não queremos inexistir para a realidade diária, já não queremos abandonar os próximos, já não estamos tão dispostos a abdicar da multiplicidade da vida, sob nenhum pretexto, nem mesmo para a criação de obras artísticas.

Volto a mim, depois desse salto imprudente ao intangível nós. Observo o exemplo de García Márquez, ouço as palavras contundentes de Sabato. Talvez eu nunca escreva os livros que poderia escrever, os que alcançaria com o aconselhado fanatismo, em absoluto isolamento. Escreverei outros livros, sem me ausentar do mundo e da minha própria casa, na companhia diária da minha mulher e das minhas filhas, escreverei outros livros, e esses terão que me bastar.