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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Um pai em fuga: sobre a necessidade de escapar dos filhos, e retornar

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

04/12/2021 06h00

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Era preciso escapar, do excesso, do ruído, do caos, era preciso escapar. No meio da noite nos levantamos, sorrateiros e cautelosos, vestimos as roupas já separadas, chamamos o táxi. Era preciso não se deixar ouvir, não dar passos em falso, não hesitar. A primeira nos surpreendeu pelas costas, sem muito exigir, pedindo leite fora de hora. Desta vez preferi não contestar, dei o leite e a segurei no colo em oscilação medida, com a cantiga exata que embalasse seu sono sem demora. A segunda nos alcançou já na porta, aos prantos, implorando para que ficássemos, ainda que com voz resignada. Era tarde, não havia tempo para repetir as explicações necessárias, para tentar um conforto veraz. Só o que fiz foi deitá-la de volta na cama, com um afago nos cabelos, e o abraço mais apertado que pude lhe dar. Até mais, filha, prometo que não vamos demorar.

Foi nítido o olhar de espanto do porteiro ao ver que saíamos ambos, com malas indiscretas, em plena madrugada. Estamos escapando das meninas, tentei brincar, mas a verdade das palavras alterou o tom que eu pretendia e só fez agravar o susto do homem. Não pode, ele arregalou os olhos, tem que levar junto! Já entrávamos no táxi quando gritei de volta, com toda gravidade, não se preocupe, elas vão ficar bem, os avós já vieram para cuidar delas. Agora o carro se afastava do prédio e já não encontrava nenhum obstáculo, mais nenhum questionamento inesperado. Partíamos, estávamos a caminho, nada nos impediria agora, havia sido um sucesso nosso plano de fuga.

O silêncio noturno era feito de alívio, de sossego, era um fôlego manso que apaziguava os nossos corpos. Era, desde o primeiro instante, bem aquilo que queríamos quando planejamos viajar sem crianças: o tempo plácido a comportar tudo, a leitura das tardes, a intimidade das noites, a conversa alentada a qualquer hora, a cumplicidade ininterrupta que tanto nos faltava. Éramos nós outra vez, ressurgíamos como casal sem filhos, como seres autônomos que já não têm de carregar outros seres, de cuidar de outros seres em toda a profusão de tarefas mínimas que constitui essa missão complicada. Por alguns minutos nem nos tocávamos: só o que queríamos era a existência livre e emancipada dos corpos alheios, mesmo que tão íntimos, tão confundíveis com os nossos.

Não entrarei aqui em detalhes dos dias amenos e prazerosos que vivemos depois dessa noite, dias que prefiro preservar entre nós. Estar sem filhos pode ser um júbilo pouco alcançável pelas palavras, sobretudo quando o vivenciamos depois de anos, depois de tanta clausura desesperada. Na praia é que me ocorreu a imagem: os filhos são como uma maré cheia que vai subindo pouco a pouco e pode nos cobrir até o pescoço. Uma maré de águas alegres e cálidas, sim, mas tantas vezes também de ondas turbulentas que quase nos afogam. Agora visitávamos praias de águas claras, cristalinas, de marés baixas que apenas brincavam com os nossos pés, e só quando queríamos nos envolviam num banho calmo.

Mas é surpreendente quanto as crianças podem se fazer presentes mesmo quando invisíveis, mesmo quando distantes milhares de quilômetros. Uma maré dessas nunca vaza de vez, nunca seca. Em poucos dias elas já voltavam a ser personagens recorrentes nas nossas conversas, muito insistíamos em falar delas, de suas graças rotineiras, seus risos típicos, suas teimas. Tulipa ali conosco estaria nesse instante recolhendo as pétalas caídas ao longo de uma trilha, preparando sua poção cheia de cores e aromas. Penélope decerto tentaria perseguir os caranguejos, beliscar seus bracinhos antes que eles beliscassem os dela. E o que pensariam as duas dessa nuvem em forma estranha que agora tomava o céu? Veriam, como eu, o mesmo golfinho de corpo curvado e bico fino, animal branquíssimo contra o azul?

O alerta de tubarão certamente as alarmaria e as encantaria em medidas iguais. Mais ainda quando descobrissem que se tratava de uma fêmea, que chegara junto à praia para desovar os seus filhotes. Agora caminhávamos pela areia e contávamos quase uma dezena de tubarões mínimos traçando seus primeiros caminhos na água rasa, aprendendo sozinhos a nadar. A tubaroa, como o guia a chamava, não demoraria em ir embora, não quereria saber se estão bem os filhotes, se riem, se dormem. Tão de imediato se aliena de sua própria prole que precisa se afastar para não a comer, como comeria qualquer outro peixe em sua fome insaciável. Que lição de desapego, que lição de liberdade. Ou bem: que existência trágica a desse animal, agora pensávamos, que nada vê e nada sabe sobre os próprios filhos durante toda a vida, e que nem é capaz de reconhecê-los na próxima onda.

Nossa maré voltara a se encher ao máximo, mas era agora feita de ausência, de saudade. Nada tubarões, nos tornávamos animais intensamente nostálgicos, víamos nossas filhas por todo lado, discutíamos nossas filhas, em cada capricho idiossincrático, em cada charme. Como estaria Tulipa agora, por que motivo estaria abrindo seu riso fácil, que lhe atravessa as bochechas de parte a parte? E a tosse de Penélope que não passava, como estaria dormindo a pobre com aquela tosse forte, e sem o nosso colo, nosso acalanto? Eram os últimos dias de viagem, e até as palavras que nos dizíamos se faziam um tanto mais parentais, a maré já inundava o nosso vocabulário.

Com que sanha, então, chegou o dia de voltar, o dia em que escrevo estas palavras, com que sede de reencontrá-las componho esta crônica. Agora os animais marinhos não me interessam nada, são lembrança pueril dos belos dias de descanso, a brincadeira infantil que escolhemos para relaxar. Agora sou eu mesmo o animal, um cavalo ávido por retornar, saltando porteiras e cercas, saltando todo obstáculo que o impeça de chegar. Com a mesma pressa e a mesma decisão com que parti, com a mesma necessidade imperiosa, volto para casa. Sinto alguma insegurança, penso no abraço de que elas vão querer escapar, penso em sua discreta mágoa que pode durar alguns minutos ou algumas horas. Nada me importa: com firmeza inamovível, quero retomar meu lugar de pai, quero abraçar de novo o excesso, o ruído, o caos.