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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Temos passado por um triz: o mundo sustentado em delicados fios

kasto80/iStock
Imagem: kasto80/iStock

Colunista do UOL

23/10/2021 06h00

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Por um triz, passamos por um triz. Foi o que senti há poucos dias, na primeira vez em que voltei à sala de aula e me vi novamente cercado por alunos animados e apreensivos. Algo de fundamental podia ter se perdido. Estivemos a ponto de aceitar que bastava ver a imagem dos nossos rostos, ouvir nossas vozes eletrônicas, não mais vivenciar proximidades, não mais nos tocarmos, existirmos sem corpos. Um ano a mais, um risco a mais, uma restrição mais longa, e teríamos sucumbido. Estivemos a ponto de prescindir daquilo que há de imprevisível no encontro. Porque, sim, é em presença que pode se dar algo de incerto e inesperado, algo de raro, e essa talvez seja a única verdadeira vantagem sobre as facilidades da vida virtual. Passamos por um triz de perder o imponderável.

Senti naquele momento a delicadeza de tudo, a fragilidade que sustenta a nossa existência, o nosso mundo. Falava sobre algo por si mesmo frágil e delicado, falava sobre literatura, essa arte que se quer eterna, indistinguível da experiência humana, mas que sofre com imenso impacto os efeitos do tempo histórico, de seu perpétuo presente convulso. Tantas eternidades já definharam num instante. Por um triz temos passado, escritores, críticos, leitores. Incontáveis vezes estivemos a ponto de ver tudo transtornado, de já não encontrar sentido nos livros, de acabar por esquecê-los em estantes desordenadas, em bibliotecas cobertas pela poeira dos séculos. E, no entanto, talvez esteja nessa debilidade alguma beleza da literatura, talvez seja por sua fragilidade que ela se faz mais necessária.

Saí pensando nisso tudo e me peguei observando as ruas. Era noite, e as calçadas sombrias não escondiam a quantidade de pessoas amparadas pelos muros, escoradas em paredes alheias, despossuídas de qualquer teto. O país é só infortúnio, pensei, e voltou a me assaltar a mesma ideia de antes, que agora me parecia quase otimista: temos passado por um triz. Um país pode ser tão frágil quanto uma abstração, a qualquer momento suas bases imprecisas podem deixar de existir. Num instante, tudo pode se ver transtornado, tudo aquilo que um dia chegamos a julgar garantido. Um ato a mais, um acinte a mais, mais uma decisão abusiva e então já não encontraremos abrigo, democracia, justiça. Mas talvez, eis o que então me acalmou, talvez também a compreensão dessa nossa fragilidade coletiva nos permita, em pouco tempo, quando acabar o pesadelo, subsistir.

Já me aproximava de casa quando me atacou o último pensamento agônico, temos passado por um triz. Agora já não pensava na vida social, ou na literatura, ou no país, pensava numa entidade maior, que tudo inclui e tudo subordina a si: a humanidade inteira tem passado por um triz. Talvez o conjunto vasto de agonias responda justamente a essa ameaça única e superlativa. A cada dia a humanidade tem assolado a terra onde vive, ignorante de sua própria fraqueza e sua pequenez, ou indiferente à sua finitude. Em pouco tempo poderia ela própria sucumbir, milhões de milênios antes do que se poderia prever. Ou então temos a chance de compreender essa superlativa delicadeza, a fragilidade do mundo que nos alberga, e tratar de preservar sua necessidade e sua beleza.

E se tudo tem passado por um triz, pensei já abrindo a porta de casa, talvez isso afirme afinal a suma necessidade de estarmos juntos, de nos encontrarmos com corpos e com vida, como se a morte pessoal ou massiva estivesse logo ali, numa noite próxima e qualquer. Só isso, só a existência em coletivo dá sentido à humanidade, a uma ideia de país, à literatura, a um encontro sensível. Só algum sentimento de comunidade pode preservar nossos afetos frágeis, e os sentidos delicados que inventamos para sobreviver, antes que nos surpreenda e nos consuma o fim.