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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O trabalho que nos impomos: como a produtividade nos rouba prazer e arte

"o capitalismo continua a nos explorar, fornecendo apenas, como novidade, uma ilusão de autonomia e liberdade.", Julián Fuks - biscotto87/Getty Images/iStockphoto
"o capitalismo continua a nos explorar, fornecendo apenas, como novidade, uma ilusão de autonomia e liberdade.", Julián Fuks Imagem: biscotto87/Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

24/04/2021 06h00

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Se eu fosse sincero comigo mesmo, não escreveria este texto. Não me fecharia em palavras em mais uma sexta-feira pandêmica, para alinhavar uns parágrafos a mais sobre as lógicas tortuosas que nos regem e os nossos disparates corriqueiros. Sobretudo não o faria, como o faço agora, para criticar este rigor de produtividade que nos consome, que nos obriga a sempre fazer mais, criar mais, dizer mais. Se eu fosse sincero comigo mesmo, pediria desculpas ao meu editor, acenaria brevemente a algum possível leitor, e me retiraria a um silêncio feito de paz e sossego - ou à ruidosa companhia das minhas filhas, que é o mais próximo que tenho chegado do improdutivo silêncio.

Desde o início destes tempos convulsos, me espantou a inércia com que mantínhamos ativo o nosso ímpeto produtivo. A morte era massiva, como ainda é, absurdos os desmandos oficiais, como o são cada dia mais, e ainda assim tantos de nós avaliamos que devíamos nos manter firmes no trabalho de outras vezes, que não podíamos desviar os olhos das nossas insondáveis metas. E, quando isso se revelou uma impossibilidade absoluta, quando o tempo se fez indomável e toda concentração uma miragem, passamos a ser acometidos pela apreensão e pela culpa, passamos a nos martirizar por não sermos capazes de atender a tantos anseios.

Não há nenhuma novidade no que digo, nenhuma novidade no que temos vivido. Já há dez anos o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han vem descrevendo essa sociedade feita de sujeitos imensamente dispostos a explorar a si mesmos, carregando em suas próprias costas o fardo que é o imperativo de rendimento. Se há uma autoridade externa que nos exige a produção máxima, e tantas vezes há, ela se internalizou nos trabalhadores contemporâneos, e assim pode ter se tornado até mais incontornável, mais exigente, mais cruel. "Cada um carrega consigo seu próprio campo de trabalhos forçados", diz Han, "e o que é peculiar neste campo é que a pessoa é ao mesmo tempo prisioneira e vigia, vítima e criminosa".

Os duros efeitos dessa autoimposição de esforços continuados não são difíceis de reconhecer. Quem não escapa a essa prática exploratória logo se vê extenuado, esgotando a um só tempo seu corpo e sua vontade. "É um cansaço fundamental, que acompanha de forma permanente e em toda parte a nossa vida como se fosse a nossa própria sombra", descreve Han. Na sociedade do cansaço, pelas imagens dramáticas que o sul-coreano desenha com suas palavras, somos então sujeitos curvados que se açoitam com o próprio chicote, sujeitos que levam aos seus pés a prostrada sombra de sua exaustão. Eis como o capitalismo continua a nos explorar, fornecendo apenas, como novidade, uma ilusão de autonomia e liberdade.

De inúmeras maneiras a pandemia tem agravado essa situação já tão problemática, tem acentuado os nossos males. Poderia aqui falar sobre a prática do trabalho em casa, que alarga as suas margens e quer ocupar todos os horários. Poderia falar sobre a lógica da produtividade que invade outros setores da vida, que contagia os encontros informais, as relações familiares, o exercício da paternidade. Mas não terei a ambição produtivista de querer falar de tudo.

Por ora, me limito a comentar o que talvez seja um detalhe, um problema menor em meio à profusão de sofrimentos pandêmicos: a difundida sensação de que as trajetórias laborais foram interrompidas, de que não há avanço possível numa infinidade de carreiras. É isso, creio, o que gera um inconformismo geral com a própria performance, e que passa a exigir medidas excepcionais, movidas pelo desespero. É por isso, talvez, que nos vemos impelidos a insistir de todas as maneiras, a duras penas, indiferentes às graves consequências que podemos sofrer. Na luta contra um fracasso que é mais do mundo do que nosso, esgarçamos os nossos corpos, esfalfamos as nossas mentes.

O que perdemos com esse estado de coisas é de um tamanho imenso que não cabe no texto. Mas sinto que, entre as coisas que perdemos, está algo de valioso e vivo: está o prazer. Não qualquer prazer, é claro, porque cada um vai encontrando seus gostos compensatórios, suas alegrias comezinhas, suas satisfações pequenas. Mas, sob o assédio das pressões internas que nunca cessam, perdemos um prazer mais livre, um prazer impoluto, ocioso, intocado pelas angústias e pelo sentimento de insuficiência. Como se o gozo só pudesse ser um extravasamento, nunca uma alegria plena.

E não sei, não quero extrapolar o argumento, mas talvez percamos também, de muitas maneiras, a possibilidade da arte. O ímpeto artístico não costuma suportar bem as exigências de produtividade, raramente responde com tranquilidade a pressões externas. Sua lógica é a da inutilidade, do objeto que não encontra lugar entre os bens conhecidos, da linguagem que abdica de uma comunicação imediata para chegar a uma compreensão de outra ordem. Sem ócio, sem silêncio, a arte talvez acabe por se fazer superficial e ordinária.

Há mais de um ano, quase não consigo me fechar em palavras para produzir algo de literário. Tudo o que minha ânsia produtiva me devolve são estes textos regulares, que pouco me bastam, que só me oferecem o prazer secundário de me colocar em contato com o mundo, de testar se ainda há uma comunicação possível, se ainda há diálogo. É algo, mas não é tudo. Por ora, prefiro abrir a porta deste escritório e encontrar as minhas filhas, que me esperam com seu abraço inútil, cheio de prazer, de ócio, de arte.