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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tempo de lágrimas: notas sobre a comoção na era da brutalidade

Thyago Andrade / Foto Rio News
Imagem: Thyago Andrade / Foto Rio News

Colunista do UOL

20/02/2021 04h00

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Lágrimas, por toda parte ouço falar de lágrimas, de pálpebras que não conseguem conter as lágrimas, de lágrimas que escorrem por rostos crispados, de sorrisos regados a lágrimas. Maria Bethânia canta numa noite silenciosa e leva lágrimas aos olhos de alguns milhares. O padre Júlio Lancelotti tritura pedras sob um viaduto desumano, e a notícia de sua humanidade faz jorrar uma profusão de lágrimas. Em cada casa, chego a suspeitar, uma imagem terna, a história de um gesto afável, a eliminação de um personagem de reality, em cada casa algum acontecimento peculiar serve de ensejo ao pendor das lágrimas.

O tempo está bom para chorar, é claro, isso só os brutos se atrevem a negar. São tantas as dores, as aflições, as perdas, os pesares, que muito mais surpreenderia que estivéssemos secos, estéreis, impassíveis. Mas o que convoca a atenção agora não é o choro de constrição e desgosto, e, sim, possivelmente o seu contrário: o choro que haverá de nos redimir, o choro que haverá de nos libertar. As lágrimas benfazejas que nunca chegamos a compreender de todo, lágrimas cujo sentido ulterior nos escapa. Por que choramos agora?

Se choramos no exato instante em que as palavras faltam, qualquer explicação para o ato de chorar terá algo de traiçoeiro e inexato. Talvez por isso haja pouca reflexão sobre um acontecimento fisiológico tão elementar, talvez por isso nos vejamos muito mais propensos a narrá-lo, a retratá-lo em abundância de detalhes. Já faz alguns séculos que as lágrimas passaram a fluir copiosamente em obras literárias, pictóricas, teatrais, logo cinematográficas. Já faz alguns séculos que o choro nos enternece até mais do que a razão para chorar, e a cada dia nos comovemos com lágrimas alheias, a cada dia nos comovemos com as nossas próprias lágrimas.

Tão comovidos nos vemos nestes tempos que não nos basta chorar, também precisamos falar sobre as lágrimas. E falar sobre as lágrimas talvez seja uma maneira de não falar sobre outras coisas, de escapar por um átimo da nossa cotidiana dor. Choramos por uma música boa, por uma boa ação, e as lágrimas se convertem numa lente que ofusca o mundo, o suaviza, o atenua. "No fundo, no fundo do olho, este não seria destinado a ver, mas a chorar", propõe Derrida. As lágrimas vêm aos olhos para velar a vista, para ocultar, e na fugacidade desse instante o horror é invisível - ao menos nesse instante aprazível não existe nenhum horror.

Só os seres humanos, dizem, são capazes de produzir essas lágrimas, só os seres humanos as utilizam para algo mais do que umedecer os olhos. Talvez porque só a nossa espécie tenha percebido com tanta clareza sua própria atrocidade, a ruína que provoca no mundo, a infinita dor que infunde sobre si própria. Ou talvez porque lhe seja necessário fazer visível sua dor, torná-la palpável aos dedos, e assim mais tangível à sensibilidade. Chorar com lágrimas, falar sobre as lágrimas que choramos, talvez seja uma forma de pedir clemência, de implorar por uma improvável piedade dos homens terríveis que nos cercam - e que por vezes também somos nós.

Mas não me deixo convencer por completo por essas hipóteses, e sobretudo não quero desajeitadamente condenar as lágrimas. Sinto que há algo mais nessa comoção geral, e há algo mais nesse anseio por informar os outros sobre as nossas lágrimas. Em tempos brutos, chorar em silêncio talvez seja uma dissipação de recursos, um desperdício do que temos de mais agregador. Chorar pela beleza de uma voz, chorar por um gesto de bravura, pode ser uma forma de contrariar a distância e chegar mais perto de outros corpos que choram. Formaríamos assim um círculo de sensíveis, constituiríamos assim alguma comunidade. Contra as armas dos brutos, resistiríamos também com lágrimas.

"Em todas as lágrimas se demora uma esperança", escreveu Simone de Beauvoir. A frase assoma perigosamente ao abismo de sentido do clichê, mas é salva pelo verbo que a autora escolhe. Nas lágrimas não mora uma esperança, uma esperança não jaz. Nas lágrimas uma esperança se demora, uma esperança aguarda - até que seja tempo de despertá-la, até que sobrevenha a ocasião para convertê-la em ato. Das lágrimas que hoje choramos poderá jorrar a nossa força.