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Julián Fuks

A potência do recomeço -- uma das mais adoráveis invenções humanas

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

09/01/2021 04h00

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E então, contra toda expectativa, transgredindo a paralisia do tempo, eis que vencemos o último dia do último mês do ano mais lento, eis que encerramos 2020. Não se ouviram fogos à meia-noite, nas ruas o silêncio era denso. Quem apurou os ouvidos, porém, pôde escutar o sopro que atravessou nesse exato momento uma infinidade de lábios entreabertos, pôde ouvir o som do alívio que tomou o bairro, a cidade, o país inteiro.

Durou um ínfimo instante a concordância no suspiro, o comum alento a pairar na limpidez da noite, e logo voltamos ao burburinho do dissenso. Uns passaram a dizer que não encerramos nada, que ainda vivemos a mesma época de absurdos diários, de recordes mórbidos, de tristeza e desalento. Outros afirmaram que passamos a algo pior, que o novo ano só pode ser de agravamento, de acentuação da loucura em que nos metemos. Viram?, disseram os primeiros quando a pandemia contou os 200 mil mortos brasileiros. Viram?, disseram os outros quando uma turba de amalucados sinistros tomou de assalto o Congresso estadunidense.

Têm sua razão os negacionistas do calendário, têm razão os que desconfiam deste impossível futuro que se fez presente. Nem precisariam ir tão longe nos exemplos, poderiam apenas afirmar a aleatoriedade que há em todo registro do tempo, o arbítrio com que insistimos em delimitar os anos, meros volteios de uma rocha pelo universo. Poderiam alegar, com justiça, que não existem começos, que nunca existiu em lugar nenhum um começo. Que todo suposto marco inaugural sucede uma série de acontecimentos semelhantes, embora menos evidentes, numa cadeia que se expande ao infinito, para trás e para frente.

Mas não sei, prefiro discordar dos sensatos, prefiro achar que há alguma beleza na invenção humana do recomeço. Não citarei aqui os versos de um falso Drummond, como fez um falso Fuks, um mero Fux que ocupa o cargo de ministro. Não defenderei a falsa ideia de que há função no sofrimento, de que precisávamos passar pelo martírio de 2020 para aprender algo indefinível, e então renascer depois do tormento. Num Drummond autêntico, o sofrimento será sempre razão de pasmo e compaixão. Num Drummond autêntico, a esperança não se instaura por decreto, mas se constrói dentro do peito e ali permanece, à espera da palavra ou do gesto que a liberte.

Aqui permanecemos, somos sobreviventes de um ano terrível, e é aceitável considerar que alguma coisa vencemos. Cedo ou tarde, confio que seremos capazes de deixar para trás a inação que tomou os nossos corpos, a inércia do pensamento, a paralisia anímica que nos contagiou nesses muitos meses. Não é uma confiança vaga, temos um bom lastro para o recomeço: foi tanto o que abandonamos, tantos projetos que adiamos indefinidamente, tantas obras largadas ao meio, tantas manifestações que desertamos, tantos amores possíveis que deixamos em suspenso. Toda uma vida que podia ter sido e não foi, toda uma vida convertida em promessa de vir-a-ser - para usar a expressão do Drummond verdadeiro.

Temos a nosso favor o fracasso pretérito, essa história comum de múltiplas desistências. Eis uma das minhas poucas convicções firmes: do valor da hesitação, da incerteza. Há uma clarividência que só nos visita depois que nos deixamos atordoar pelas dúvidas mais sinceras. Muitas vezes li a respeito, algo disso experimentei, dubitativamente: que o mais valioso que podemos produzir acontece depois da desistência, depois da constatação de sua impossibilidade, de sua inadequação, de sua insuficiência.

Se assim for, há algo de prolífico e de potente que se deixa guardar para este ano seguinte, este ano que faz pairar no ar o seu comum alento. Foi grande o nosso atordoamento, foram inúmeras as dúvidas que assaltaram o nosso capitólio íntimo. Restituídos do tempo, é possível que nos tornemos capazes de produzir mais que suspiros coletivos. Já podemos ficar alertas: não há de demorar a hora de retomar projetos, amores, livros, de irromper nas ruas e calar o silêncio.