Topo

Júlia Rocha

Essa falta de ar NÃO é só ansiedade. Aprofunde!

iStock
Imagem: iStock

02/04/2020 04h00

Em alguma medida, mesmo para os desavisados ou para os que permanecem em negação, o pânico, o pavor, o desespero e a ansiedade já estão sentados sobre nosso peito há alguns dias. Pelas minhas contas, pesando cada um deles uns 80 quilos, ficou muito difícil respirar.

Nas últimas semanas especialistas em saúde mental tentaram explicar a dinâmica do adoecimento psíquico durante o isolamento. Muitos alertavam para a possibilidade de instabilização de quadros de ansiedade, inclusive levando pessoas a buscarem ajuda médica nas unidades de pronto-atendimento, o que certamente as colocaria em risco e poderia sobrecarregar os serviços de urgência.

As pessoas com quadros de falta de ar, dor no peito, angústia, sensação de abafamento, após avaliadas e rotuladas - "crise de ansiedade" -, são autorizados a voltar tranquilas para suas casas já que a urgência não é o lugar delas. E não é mesmo.

Ao ler o que já havia sido produzido mundo afora a respeito do impacto desta quarentena sobre a saúde mental das pessoas, percebi o quanto, outra vez, damos nome de doença aquilo que não é doença. Pelo menos, não totalmente. Patologizamos injustiças estruturais para seguirmos cegos e pouco revolucionários neste sentido.

Para além da óbvia associação destes quadros com o confinamento que de fato é adoecedor para muitos de nós, há um contexto social, político e econômico que nos gera outros inúmeros motivos para nos sentirmos sufocados do nascer ao fim do dia.

Reflita: será mesmo o fato de ficarmos trancados em casa o único motivo para essa angústia mergulhada em incerteza que muitos de nós estamos experimentando? E se eu estivesse confinada em casa mas a maior liderança do meu país aparecesse na TV para incentivar a todos que façam o mesmo? E se o país proporcionasse aos seus trabalhadores as condições materiais adequadas para que eles passem este período com dignidade, preservando suas vidas e dos seus familiares?

Estaríamos tão acuados e ansiosos se pudéssemos, de dentro de nossas casas, entrar em contato por telefone com profissionais de saúde informando nossos sintomas e esperá-los até que chegassem para realizar gratuitamente o nosso teste e a nossa avaliação clínica?

Estaríamos tão desgastados mentalmente se a TV mostrasse que todos os profissionais de saúde estão trabalhando em condições adequadas, protegidos por equipamentos de proteção individual realmente efetivos? Estaríamos tão assustados se não houvesse gente morando na rua e sem saber do que se trata esta pandemia e perguntando por que as pessoas agora resolveram sair de máscara?

O que se vê atrás de cada janela são pessoas que já viviam no limite financeiro, se descobrindo absolutamente desamparadas pelo estado. Gente que trabalhava de dia para comer a noite abandonada à própria sorte. E o tempo vai passando e trazendo para cada vez mais perto de nós esta onda de privações básicas, de falta de recurso mas, via de regra, só nos mexemos política e coletivamente quando já afogados, ou afogando.

Caríssimos, não há yoga ou exercício de mindfulness capazes de arrancar do peito de um pai a angústia da fome que bate à porta e encontra seus filhos ainda pequenos. Não adianta saber que a falta de ar que sentimos hoje é ansiedade e não Covid-19. A prioridade máxima e absoluta é que se estabeleça dia e hora para que os valores aprovados para socorro dos trabalhadores, isolados em casa, cheguem em suas mãos. Sem dinheiro, sem uma renda básica que garanta sobrevivência não há quarentena. E sem quarentena, queridos, não há nada.

Enquanto disputamos entre nós quem se parece mais com aquele que deve morrer, esquecemos que as soluções neste momento precisam vir das estruturas. As vaquinhas online se multiplicaram na velocidade da luz, mas até quando isso vai ser viável? Pobres, trabalhadores já no seu limite financeiro tentando se ajudar de cá e de lá e, como dizem aqui em Minas, "vestindo um santo e deixando o outro sem roupa". Isso não é sustentável. Isso não vai minimizar nossos traumas, nosso desespero e muito menos salvar vidas nesta pandemia.

Há que se buscar politicamente por saídas que obriguem o estado a se implicar neste processo, gastando nossas reservas, derrubando a EC-95 que limita o teto dos gastos públicos e garantindo que serviços não essenciais possam ser paralisados sem que trabalhadores precisem se expor desnecessariamente, nem ao vírus, nem a fome.

Há países que estão a fazer o que precisa ser feito. Na Alemanha, o governo banca parte dos descontos da folha de pagamento realizado por muitas empresas a fim de manter os empregos. A população recebe em casa o profissional de saúde que testa os sintomáticos e avalia suas condições antes que eles precisem procurar o pronto-socorro. Os serviços de saúde se organizaram de forma eficiente e estão conseguindo responder às necessidades da população. Tudo isso fez com que a taxa de letalidade da doença no país fosse das menores do mundo.

Percebe? Assim dá pra ficar ansioso só por que está preso em casa, e não por não saber se haverá comida para os seus filhos até o final de semana. Por aqui, ainda estamos na fase do salve-se quem puder. Torcemos para não sermos tão velhos, tão hipertensos, tão asmáticos, tão diabéticos a ponto de precisar do estado para alguma coisa, mas já se sabe que a doença não faz cerimônia e não se importa muito com essas coisas. Pelo contrário, ela testa nossa noção de coletividade, nosso senso de solidariedade. O TEMPO INTEIRO. Por isso, o quanto antes NÓS percebermos que só sairemos vivos disso com organização coletiva, melhor.