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Fred Di Giacomo

REPORTAGEM

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Autor de 'Torto Arado', Itamar Vieira Jr. não quer saber da opinião da USP

"Salvar o Fogo", segundo livro de Itamar Vieira Junior, já vendeu 40 mil exemplares - Foto: Raul Spinassé/UOL
"Salvar o Fogo", segundo livro de Itamar Vieira Junior, já vendeu 40 mil exemplares
Imagem: Foto: Raul Spinassé/UOL

De Ecoa, em São Paulo (SP)

28/05/2023 06h04

"Há muito encontro no afeto", me diz Itamar Vieira Junior, escritor mais lido no Brasil, após afirmar que o país "não se conhece" e de denunciar o apagamento que a escritora Carolina Maria de Jesus sofreu depois da glória vivida com seu primeiro livro "Quarto de Despejo". Além de Carolina, Itamar cita autores como Frantz Fanon, Alice Walker, James Baldwin e... Paulo Coelho, de quem diz ter orgulho e já ter lido dois livros: "Viva o Paulo Coelho! Deu uma banana, foi embora [do Brasil] e vive da literatura."

"Se me perguntarem: 'Você quer escrever para a USP ou para encontrar leitores?' Vou sempre preferir encontrar leitores", afirma o escritor baiano, que acredita que "a crítica brasileira está sempre em busca de Proust e à espera de Beckett. Quando eles descobrem que não há nem Proust, nem Beckett, a coisa azeda."

"Torto Arado", primeiro romance de Itamar já vendeu 700 mil exemplares e foi seguido pelos 73 mil exemplares dos contos de "Doramar ou a Odisseia" e dos 40 mil exemplares do recém-lançado "Salvar o Fogo". Sem medo do sucesso, o geógrafo e funcionário do Incra faz parte de uma geração de autores que explodiu nos últimos anos quebrando o estereótipo do escritor branco e rico vivendo em uma metrópole do Sudeste. De licença do seu emprego, onde trabalhava pela reforma agrária, o "pai de pet", que divide o lar, no bairro soteropolitano de Itapoã, com gatos e cachorros, fala de temas caros a sua obra, além de revelar segredos e inspirações de seu último romance:

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Itamar Vieira Jr.
Imagem: Rafaela Araújo/Folhapress


Ecoa - Itamar, qual a importância das políticas de cotas para o momento que nossa literatura vive?

Itamar Vieira Junior - Vivemos uma revolução silenciosa, né? A política de cotas, junto com várias outras políticas (do ensino de cultura afro-brasileira nas escolas, da regulamentação do trabalho da empregada doméstica, etc.) são artigos de um "decreto da Abolição", que ainda está sendo escrito. Essa política permitiu que inúmeras pessoas que não tinham acesso pudessem ingressar nas universidades; foi uma medida de reparação, de justiça social. Essas pessoas saem da universidade, senhoras do do próprio destino, querendo conhecer a própria história e a história do país. Não por acaso, tem sido lançada luz sobre uma literatura que fala dos nossos traumas coloniais escravistas. Essa literatura tem ocupado as prateleiras das livrarias, muitas vezes no lugar dos [livros] mais vendidos.

E isso incomoda? 135 anos depois da abolição, ver um homem negro no lugar de escritor mais popular do país incomoda?

Acho que sim, né? É curioso: você não imagina que isso vai acontecer. Depois que ocorre com frequência, você vê o quanto as pessoas, que sempre desfrutaram de espaços e lugares privilegiados, acham que vão permanecer assim por toda a vida. Que ninguém abala aquele espaço que está reservado pelo simples motivo deles terem um sobrenome. Um sobrenome muitas vezes ligado a um passado colonial escravocrata.

Se a gente for pensar naquele movimento de 2013, que culminou com a eleição de Bolsonaro (PL), o estopim, quando a classe média disse "Não, a gente não vai tolerar isso", foi quando Dilma (PT) promulgou a lei que regulamentava o trabalho doméstico, como jornada de qualquer trabalhador: oito horas diárias, direito a férias, direito a hora extra. Ali foi a gota d'água. As pessoas foram para a rua e começou toda a nossa desgraça. Porque era uma espécie de abolição. Sempre que tem um avanço, tem uma onda retrocedendo querendo engoli-lo.

Livros de Itamar Vieira Jr.

'Torto Arado'

'Salvar o Fogo'

A terra como protagonista

Em "Salvar o Fogo", assim como em "Torto Arado", a terra é uma das personagens centrais. Me chamou a atenção, que os latifundiários que roubam a terra da família protagonista (os irmãos Moisés, Luzia e Mariinha) querem plantar mamona, uma commodity não comestível. E a família Silva quer plantar mandioca, que é a base da alimentação brasileira...

... da brasileira e, especialmente, do Nordeste. Porque a farinha de mandioca é base da alimentação das pessoas daqui. Acho que a questão da terra é central. Estamos falando de um atributo humano! Pensar terra, pensar território, é pensar humanidade. Seres humanos, e outros seres não humanos também, sem terra, não têm existência, eles não têm vida. Se é uma questão central, por que uns têm direito e outros não têm? A gente precisa de um teto e de um chão pra pisar, a gente não voa. Até os pássaros precisam de um lugar pra pousar

Todo alimento que chega à nossa mesa vem do pequeno e do médio agricultor. O grande agricultor latifundiário, ele exporta o quê? Celulose, com o plantio de eucalipto, soja... São commodities. Nós não comemos commodities! O Brasil produziu, em 2021, 1,2 tonelada de grãos por habitante. É comida que não acaba mais! Seria comida, né? Mas como é commoditie... temos 30 milhões de brasileiros passando fome.

Se a gente fizer uma sobreposição de áreas onde tem mata preservada e áreas onde vivem comunidades tradicionais, comunidades quilombolas e indígenas, a gente vai ver que as áreas preservadas são onde vivem essas pessoas. Elas estão cultivando e preservando porque aprenderam a fazer assim, são tecnologias ancestrais. Então, falar de agricultura familiar, falar de reforma agrária, falar do pequeno e do médio agricultor, é falar de segurança alimentar e, também, de uma maneira de cultivar que é menos predatória.

Você diz que, quando começou a trabalhar no Incra, teve um choque com as condições dos trabalhadores sem terra e quilombolas que foi atender. Essa seria sua resposta para quem critica sua literatura dizendo que ela fala sobre um país que não existe mais? O Brasil não se conhece?

O Brasil não se conhece mesmo. Você precisa pôr o pé na estrada e trilhar muitos e muitos quilômetros para encontrar coisas que a gente até duvida. Como eu cresci na periferia, essas dificuldades econômicas e sociais sempre marcaram o meu cotidiano. O que me assusta não é nem a pobreza, nem o estado de indigência, porque isso sempre existiu. Me assusta que as pessoas simplesmente ignoram tudo aquilo. As pessoas não conseguem nem olhar para o que está ao seu lado, então fingem que esse Brasil não existe, que essas pessoas não são dignas de um texto literário.

Eu venho de uma família pobre. Meu pai cresceu numa comunidade que inspira a Tapera do Paraguaçu, de "Salvar o Fogo". É uma comunidade que se chama Coqueiro, que também fica à margem do rio Paraguaçu. E meu pai foi criado pelos avós que eram analfabetos, que não tinham terra e passavam imensas dificuldades, até para levar comida à mesa. O Brasil não se conhece de fato, fico contente com essa constatação e de perceber que aquilo que eu escrevo incomoda e que provoca dúvida nas pessoas. Espero que, um dia, elas saiam de suas bolhas para ver o que há fora.

"Salvar o Fogo": uma autobiografia?

2 - Renato Parada/Divulgação - Renato Parada/Divulgação
Itamar Vieira Junior, autor de "Salvar o Fogo" e "Torto Arado"
Imagem: Renato Parada/Divulgação

Dá pra dizer que "Salvar o fogo" é seu livro mais autobiográfico?

Uma biografia atravessada imensamente por imaginação, né? Eu vejo semelhanças entre mim e o Moisés (um dos três narradores do romance), vejo semelhanças entre meu pai e o Moisés. Concordo que, talvez, seja a história mais autobiográfica. As características físicas e de vida da Luzia (irmã de Moisés e segunda narradora do livro) são inspiradas na minha tia Belita. Tia Belita era uma mulher negra, corcunda, muito baixinha, que usava uma trança grande. Ela não casou, não teve filhos e trabalhou como lavadeira da Igreja do Bonfim [em Salvador] durante muitos anos. Era uma pessoa que não tinha nada. Quando ela morreu, deixou um travesseiro de herança. Era tudo que ela tinha. Minha tia Rita, irmã de minha mãe, ficou com esse travesseiro e dormiu nele mais de 30 anos.

Apesar do sucesso estrondoso do "Torto Arado", me parece que sua intenção não era fazer um livro pop, né?

Não, foi uma mera coincidência. Consegui escrever de uma maneira simples que encontrou leitores em diversos estratos sociais. Sabe, tem sempre alguém que me diz: "Já encontrei um morador em situação de rua dormindo e tinha seu livro ao lado, com a capa toda esculhambadinha". Tenho o privilégio de ser lido pelas pessoas, de saber que não fui pedante ao ponto de escrever uma história que uma pessoa que não tenha tido a oportunidade de se escolarizar não consiga ler. A [historiadora] Lília Schwarcz fez uma matéria grande para a revista Piauí com Dona Helena, a última pessoa no Brasil descendente direta de um escravizado, filha de um escravizado. Dona Helena tem 97 anos e leu "Torto Arado". Ela falou das semelhanças [do livro] com sua própria vida, sua infância, até reclamou "Que meninas travessas, cortaram a língua!" [referência ao primeiro capítulo de "Torto Arado"]. Achei extraordinário!

Você disse que é um otimista incorrigível. Como está seu otimismo?

Continuo otimista por uma questão simples: tem que ter algum estímulo para a gente levantar da cama. Se a gente não acreditar que as coisas podem melhorar, é melhor ficar por lá deitado, esperando o fim. Acho que ser niilista não é muito coerente com a história humana. O mundo já foi um lugar muito pior. Ainda não é o ideal, mas não dá para desistir, não tem outra opção. Desistir nunca foi uma opção

Falando sobre acreditar, por causa dos seus livros, várias pessoas acham que você é um cara de fé...

Eu adoraria porque, aí, resolveria meus problemas com um pouco de magia. Mas, infelizmente, não nasci com esse dom, não me considero com o dom da crença, minha religião é a literatura.

Um de seus filmes favoritos é o "Dersu Uzala", que conta o encontro entre um pesquisador russo e um indígena da Sibéria. Existe esperança para a nossa sociedade nessa chave do afeto?

Há muito encontro de afeto. O [escritor negro estadunidense] James Baldwin dizia que, nesse embate racial, ele não aderia por completo a uma política de ódio. Porque, se aderisse, teria que apagar muita coisa bela que aprendeu com as pessoas brancas, muita coisa bonita que fazia parte da arte dele. Então, ele dizia que o ódio só destrói quem odeia. Nos resta educar a sociedade para uma vida antirracista.

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