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Como picapes encaram lama com 13 crianças na caçamba para não perderem aula

Do UOL, em São Paulo

30/05/2023 04h00

É impossível discutir sobre acesso à educação sem abordar a questão da mobilidade. Para que os alunos possam chegar às escolas com segurança, cada região do Brasil tem suas soluções alternativas (e muitas vezes criativas) às vans escolares. Sejam por meios terrestres ou hidroviários, elas são pensadas para atender especificamente às demandas locais.

Algumas chegam a ser tão diferentes que, até por desconhecimento, acabam dando origem a polêmicas. Um dos casos é o das picapes do Acre, que contam com uma estrutura adaptada às caçambas, dentro das quais as crianças são transportadas. Nas imagens que circulam pela internet, observa-se uma Ford Ranger, nesses padrões, enfrentando bravamente um longo atoleiro.

UOL Carros foi atrás de mais registros e descobriu que há uma grande variedade de veículos servindo a esse propósito, em situações que, muitas vezes, chegam a ser ainda mais desafiadoras do que a que viralizou.

É natural que dúvidas sejam levantadas sobre esse assunto, afinal de contas, ao mesmo tempo que isso é realidade distante de muitas, tem tudo a ver com o cotidiano de muitas outras.

Como funciona esse tipo de picape escolar? Oferecem segurança para os ocupantes? Quais são as regulamentações para que essa categoria de transporte se torne regular? O que dizem as autoridades e os que trabalham com isso? Descobrimos.

"O que for preciso para que as crianças cheguem com conforto e segurança"

Picape escolar - Acervo pessoal / Ana Cristina Silva de Souza - Acervo pessoal / Ana Cristina Silva de Souza
Imagem: Acervo pessoal / Ana Cristina Silva de Souza

Ana Cristina Silva de Souza atua como monitora nas picapes escolares. Ela conta ao UOL Carros como o seu trabalho é duro, mas muito gratificante, pois, para ela, não há nada melhor do que ver as crianças chegarem às escolas com dignidade.

"Fazemos de tudo para que elas não percam conteúdo e que cheguem com conforto. E sim, por incrível que possa parecer, chegam com conforto e segurança. Quando chove, temos lonas para fechar e não molhar o aluno. Além disso, a picape - que é lavada diariamente - não arremessa lama sobre as crianças. Todos se sentam em bancos acolchoados e com cintos de segurança devidamente afivelados. Nunca ultrapassamos os limites estabelecidos pelas normas e, por isso, nunca aconteceu de a picape tombar ou capotar".

Habitáculo da caçamba - Acervo pessoal / Ana Cristina Silva de Souza - Acervo pessoal / Ana Cristina Silva de Souza
Imagem: Acervo pessoal / Ana Cristina Silva de Souza

"Eu estudei na escola para a qual hoje eu trabalho. Isso do lado de como era na minha época, é luxo. Eu ia no famoso 'pau-de-arara', que é como chamamos aqui. Era tudo de madeira e tábua e, no primeiro buraco, todo mundo voava para o meio do caminhão".

A profissional também nos conta mais detalhes de como é a sua rotina, que costuma consistir em seis viagens por dia, que podem percorrer trajetos de até 200 km até o fim do expediente.

"O trabalho do monitor é o de cuidar do aluno. Isso inclui a sua integridade física e moral. Se o aluno veio comigo, volta comigo. No meio do caminho, tem alguns que enjoam, outros que ficam com sono, e eu fico ali para tomar conta do que precisarem. A gente também canta no caminho e procura se entreter".

Quando chove, piora tudo

Picape escolar - Acervo pessoal / Ana Cristina Silva de Souza - Acervo pessoal / Ana Cristina Silva de Souza
Imagem: Acervo pessoal / Ana Cristina Silva de Souza

"O problema é quando chove. Forma tanta lama que nem as Agrales Marruás do Estado estavam dando conta, por isso usamos picapes como a Ford Ranger, Chevrolet S10, VW Amarok e outras. Ainda assim, até elas atolam. Isso pode gerar atrasos, mas sempre fazemos de tudo para levá-los às escolas".

"Em último caso, quando atolam de um jeito que fica difícil de tirar, acabamos tendo que chamar os pais para que levem seus filhos de volta. Mas nem todos têm tratores ou quadriciclos para nos alcançar, pois muitos são de origem humilde. Enquanto isso, ficamos tentando desatolar o veículo. E não há sinal de telefonia na região, temos só Wi-Fi. Quando cai a energia - o que ocorre com frequência - ficamos todos desconectados. Por isso, usamos rádios transmissores para falar com os pais, sintonizados em frequência fechada".

"Saímos de casa muito cedo, perto das 4h30 da manhã, mas não temos horário para voltar, pois se atolar, aí já viu. Tem vezes até que chegamos de volta do período da manhã sem ter tido tempo para almoçar. Quando chove forte, acontece de colegas terem que dormir na minha casa, já que eu moro perto de uma escola. Quanto aos funcionários das escolas, algumas delas contam até com alojamentos. E mesmo naquelas que não têm, o responsável por elas chega a ter um lugar para morar no próprio estabelecimento".

Os desafios não param por aí

"Muitos pais elogiam e parabenizam o nosso trabalho, mas ainda tem alguns que reclamam porque o filho não conseguiu chegar à escola, por exemplo. Há também outras ocasiões em que, ao chegar na casa da criança e vermos que não haveria ninguém para recebê-la, não encontramos condições para que pudéssemos deixá-la sozinha".

"Nessas horas, tentamos contato com os pais. Se ninguém nos retorna, voltamos à escola com ela e continuamos a tentar contato com os responsáveis. Já tivemos reclamações de pais por conta disso. Seria interessante se todos soubessem o quão duro é o nosso trabalho e que só prezamos pelo bem-estar dos pequenos".

União que faz a força

"Esse é o melhor reconhecimento de todo esse esforço" - Acervo pessoal / Ana Cristina Silva de Souza - Acervo pessoal / Ana Cristina Silva de Souza
"Esse é o melhor reconhecimento de todo esse esforço", diz Ana Cristina
Imagem: Acervo pessoal / Ana Cristina Silva de Souza

"Na nossa região, contamos com um forte comprometimento dos diretores das escolas com essa alternativa de transporte, que conseguiu abranger todos os alunos, gerando essa demanda para o estado. Tentamos acolher o máximo que podemos. Claro que há ramais que pertencem a outros municípios, mas sempre que dá, ajudamos o máximo de crianças possível. É um trabalho verdadeiramente colaborativo, em todos os sentidos".

"Para quem é do setor, como eu, essa modalidade de transporte foi muito importante para a geração de mais empregos, inclusive para mim que sou mulher. Agora estou aguardando pelo processo de tirar a CNH da categoria 'D' e, assim, poder me tornar também uma motorista".

Modalidade não é nova e só vem ganhando corpo

Em conversas com a Secretaria de Educação do Estado do Acre, o órgão explicou que já faz mais de dez anos que os veículos servem à Rede Pública Estadual de Ensino de forma gratuita;

Na caçamba, a capacidade máxima é de 13 alunos + 1 monitor;

Atualmente, há em torno de 72 empresas (entre pessoas físicas e jurídicas) que prestam esses serviços;

A contratação dos serviços se dá por meio de licitações com empresas privadas e se justifica em função da necessidade de atender os alunos que residem e/ou estudam em áreas rurais, principalmente de difícil acesso, pelas quais ônibus e micro-ônibus não conseguem transitar;

Atualmente, o Estado dispõe de 65 unidades do Agrale Marruá e está em processo de aquisição de novas unidades do Ônibus Rural Escolar 'ORE ZERO (4X4)';

São aquisições programadas para os próximos três anos, com ao menos 50 unidades até o fechamento dos primeiros 12 meses do início da campanha;

As empresas que prestam os serviços só têm permissão para operarem com caminhonetes e picapes que tenham motorização turbodiesel, tração nas quatro rodas e modificações que respeitem a resolução 508 27/11/2014 do Contran.

Segundo consta do artigo 108 do Código de Trânsito Brasileiro, onde não houver linha regular de ônibus, a autoridade com circunscrição sobre a via poderá autorizar, a título precário, o transporte de passageiros em veículo de carga ou misto, desde que obedecidas as condições de segurança estabelecidas neste Código e pelo Contran. Tratando-se, porém, de transporte recreativo de passageiros, deve ser observada a Resolução CONTRAN nº 813/2020, com outros requisitos" Marco Fabrício Vieira, membro da Câmara Temática de Esforço Legal do Contran (Conselho Nacional de Trânsito)

O que mais dizem as leis

Além disso, Vieira esclarece que a autorização para transporte de passageiros em veículo de carga não poderá exceder a 12 meses, prazo a partir do qual a autoridade pública responsável deverá implantar o serviço regular de transporte coletivo de passageiros.

Em trajeto que utilize mais de uma via com autoridades de trânsito com circunscrição diversa, a autorização deve ser concedida por cada uma das autoridades para o respectivo trecho a ser utilizado.

Assim, se transitar por via urbana, o órgão de trânsito local deve expedir autorização, sem prejuízo da autorização do órgão rodoviário, quando esse transporte for por rodovias e estradas (estaduais e federais).

Os veículos a serem utilizados nesse tipo de transporte de passageiros devem ser adaptados, no mínimo, com:

Bancos, na quantidade suficiente para todos os passageiros, revestidos de espuma, com encosto e cinto de segurança, fixados na estrutura da carroceria;

Carroceria com cobertura, barra de apoio para as mãos, proteção lateral rígida, com dois metros e dez centímetros de altura livre, de material de boa qualidade e resistência estrutural, que evite o esmagamento e a projeção de pessoas em caso de acidente com o veículo;

Escada para acesso, com corrimão;

Cabine e carroceria com ventilação, garantida a comunicação entre motorista e passageiros;

Compartimento resistente e fixo para a guarda das ferramentas e materiais, separado dos passageiros, no caso de transporte de trabalhadores;

Sinalização luminosa, na forma do inciso VIII do artigo 29 do CTB e da Resolução Contran nº 970/2022, no caso de transporte de pessoas vinculadas à prestação de serviço em obras na via;

A principal infração de trânsito para conduta de conduzir veículo transportando passageiros em compartimento de carga está descrita no artigo 230, inciso II, do CTB, que prevê penalidade de multa gravíssima (R$ 297,47), 7 pontos no prontuário do condutor e medida administrativa de remoção do veículo"

O especialista lembra, ainda, que segundo o Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito, comete essa infração aquele que transporta pessoa(s) no compartimento de carga ou bagageiro sem autorização, em:

Veículo do tipo "basculante" ou "boiadeiro";

Caminhão-baú, estando este com as portas abertas ou fechadas;

Guincho transportando carro na prancha, com pessoa em seu interior;

Automóvel, com pessoas em seu porta-malas;

Camioneta/caminhonete com passageiros no compartimento de carga.

Veículo transportando criança no compartimento de carga.

Tratando-se de veículo do transporte recreativo de passageiros, comete a mesma infração quando transportar passageiro em compartimento de carga:

Sem autorização do poder concedente para executar o serviço;

Fora do itinerário previsto;

Se o veículo não estiver com as adaptações previstas na autorização do poder concedente;

O rol de situações é meramente exemplificativo e não exaure e nem exclui outras situações que impliquem em conduzir o veículo transportando passageiros em compartimento de carga.

Há também as formas não regulamentadas

Nem todas as cidades e estados dispõem de recursos para oferecer transporte escolar com segurança. Outro vídeo que bombou nas redes mostra um Fiat Uno que levava 15 pessoas (entre elas, 14 crianças e o motorista) a uma escola. Infelizmente muitos ainda se esforçam e se arriscam para cumprirem com os estudos.

"Neste caso, transporte de passageiro se dá em compartimento de carga (porta-malas) de um automóvel, de forma ilegal e colocando em risco a segurança dos pequenos", afirma o especialista.

"Trata-se de infração por conduzir veículo transportando criança no compartimento de carga é infração prevista no inciso II do artigo 230 do CTB, penalizada com multa de natureza gravíssima (R$ 293,47), 7 pontos no prontuário do condutor e medida administrativa de remoção do veículo", diz.

"O motorista também transporta no veículo criança menor de dez anos de idade que não tenha atingido 1,45m de altura, sem o uso de dispositivo de retenção para transporte de criança (DRC) ou cinto de segurança, cometendo infração prevista no artigo 168 do CTB, que prevê penalidade de multa gravíssima (R$ 293,47), 7 pontos no prontuário do condutor e retenção do veículo até a irregularidade seja resolvida", complementa.

"Se não bastasse, há crianças como passageiras excedentes aparentemente menores de dez anos, que tenha atingido 1,45 m de altura, superando os assentos regulares do veículo, o que caracteriza a infração do inciso VII do artigo 231 do CTB, que prevê também penalidade de multa gravíssima (R$ 293,47), 7 pontos no prontuário do condutor e medida administrativa de remoção do veículo", finaliza.

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