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Vespa "imita" Harley-Davidson para se tornar novo ícone de status

Vespa: linha de montagem na Itália (1950) é comparada às novas butiques no Brasil - Arte UOL Carros sobre Divulgação
Vespa: linha de montagem na Itália (1950) é comparada às novas butiques no Brasil Imagem: Arte UOL Carros sobre Divulgação

Roberto Agresti

Colunista do UOL

10/10/2016 08h00

O que teria a ver a italianíssima Vespa com a genuinamente ianque Harley-Davidson? Por mais incrível que possa parecer, ambas tem trajetórias com muitos pontos em comum.

A Vespa volta ao Brasil para ser vendida em elegantes shopping-centers a preço de status symbol (saiba mais aqui), mas nasceu 70 anos atrás como solução de transporte barato em um país devastado pela 2ª Grande Guerra.

Criada por um engenheiro aeronáutico anticonformista, Corradino D'Ascanio, a Vespa chegou ao mercado italiano em 1946 inovando em diversos aspectos: o condutor ia sentado, com as pernas juntas e protegidas da sujeira e do frio; o uso de rodas pequenas deu espaço para um estepe, acessório nada inútil em ruas e estradas bombardeadas.

Demorou pouco para a Vespa virar sucesso. Mais fácil de pilotar que uma motocicleta, versátil e amigável às roupas mais elegantes -- especialmente para as saias dominantes do guarda-roupa feminino -- a Vespa virou sinônimo de mobilidade democrática e econômica.

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Enquanto isso, na América...

Do lado da Harley-Davidson foi também um conflito armado, a 1ª Grande Guerra deflagrada em 1914, a impulsionar a marca. Uma encomenda de cerca 15 mil unidades feita pelas forças armadas norte-americanas foi uma injeção de dinheiro que arremessou a empresa para um patamar tecnológico e comercial então incomparável, que fez dela a maior indústria motociclística nos anos 1920.

Como a Vespa a suas formas singulares, a Harley também se manteve fiel a uma fórmula precisa, no caso o motor de arquitetura V2. A depressão de 1929 fez surgir modelos simplificados e a motocicleta nos EUA passou de meio de transporte ou lazer a instrumento de trabalho, o que sustentou a marca de Milwaukee até a chegada de outro grande contrato, de 100 mil unidades para exército americano (2ª Grande Guerra e Guerra da Coréia), que assegurou duas décadas de caixa.

Queda e retorno

Na carreira da Vespa não foi o mal-estar de uma guerra que minou as boas vendas mas sim o oposto, o bem-estar dos italianos no começo dos anos 1960, que deu ao povo a chance e optar pelas quatro rodas do barato Fiat 500, um carro que todo italiano podia comprar. E assim, para que ter uma Vespa?

O processo de reinvenção da Vespa pós-500 foi penoso, e levou mais de uma década para que a mãe de todos os scooters voltasse a ser amada. Não mais por trabalhadores necessitados de transporte, mas por adolescentes ansiosos por liberdade. A "geração flower power" italiana fez tudo de bom, de ruim e de mais ou menos em uma Vespa e a legislação colaborou, permitindo a maiores de 14 anos conduzir os modelos de 50 cc. A garotada garantiu a sobrevivência da Vespa.

Nesse meio tempo, do outro lado do Atlântico, a Harley-Davidson afundava. O fim das guerras resultou no fim das fortes vendas. Em vez de Harley-Davidson, o norte-americano preferiu Chevys, Dodges e Cadillacs.

Ex-combatentes desajustados e o cinema ajudaram a forjar a má imagem dos motociclistas e a invasão das pequenas motos japonesas, com suas carinhas amistosas e motores que não vazavam óleo e insistiam em pegar à primeira pedalada, complementada pelo convincente slogan da Honda à época -- "You meet the nicest people on a Honda..." ("Você encontra as melhores pessoas numa Honda") -- fez o resto.

Se era ou não verdade não era certeza, mas as piores em geral estavam montadas nas Harley-Davidson.

A venda da Harley para uma companhia fora do ramo motociclístico, a AMF, notória fabricante de equipamentos para pistas de boliche, deu início ao período mais turbulento da marca, de 1969 até 1981: vendas caíram como pinos de boliche, fazendo a empresa mergulhar até o limiar da falência. Ex-funcionários (entre eles Willie G. Davidson, neto do fundador) arremataram os escombros da gigante e deram início ao processo de recuperação da imagem com foco na qualidade assassinada pela gestão anterior.

Construção de ícones

Coincidentemente, Vespa e Harley-Davidson começaram a retomar um lugar ao solo no mundo das duas rodas mais ou menos na mesma época, na virada dos anos 1980 para 1990, e o palco deste processo foi a Itália.

Abdicando do motor fumacento em favor de versões mais amigas do meio ambiente e tendo suas personalíssimas formas habilmente modernizadas, a Vespa virou fashion. Em vez de adolescentes com roupas floridas, entrou no radar de elegantes senhores e senhoras trajando grifes como Armani e Fendi.

Do quadrilátero da moda de Milão para invadir o restante da Europa foi um pulinho e hoje Vespa é moda no planeta inteiro, é chique em Nova York, Tóquio, Paris ou Kuala Lumpur.

E foi a poucos passos da Via Montenapoleone, a mais célebre das ruas do elegante quadrilátero milanês que Carlo Talamo, um italiano de família abastada, resolveu abandonar o dolce far niente e trabalhar, escolhendo o que gostava: cercar-se de motos. Italianas? Nada disso, de americaníssimas Harley-Davidson!

A primeira concessionária monomarca da Harley-Davidson na Europa abriu as portas da em 1984, sintomaticamente batizada de "Numero Uno", e tinha na vitrine apenas duas motos que ninguém queria. O consumidor à época se interessava por mísseis carenados capazes de lamber os 250 km/h e não motos pesadas, lentas e anacrônicas. Mas Talamo genialmente plantou a semente da customização, inventou moda no país que dita a moda e, coincidentemente, era e é o maior e mais apaixonado mercado europeu de motocicletas.

O fenômeno colou, transpirou para França, Alemanha e tomou todo o velho continente. Como um potente vírus, infectou o planeta e a partir de então Harley-Davidson deixou de ser apenas um "American Dream" para ser um sonho global.

Vespa e Harley-Davidson são, ao mesmo tempo, diferentes mas iguais, nem melhores nem piores que outros scooters ou motocicletas. Mas, envolvidas em uma aura especial, compreender seus encantos é algo totalmente emocional e nada racional. São ícones atemporais, lendas sobre rodas que extrapolam totalmente o senso comum.