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Colar de cunho religioso é usado para pegação em Salvador

Bloco Filhos de Gandhy, em Salvador

Fernanda Talarico e e Larissa Couto

Do UOL e Colaboração para o UOL, de Salvador

20/02/2023 09h57

Quem vai aproveitar o Carnaval em Salvador encontra um acessório recorrente entre os foliões: o colar de contas branco e azul. A primeira vista pode até parecer algo religioso, mas a realidade é outra. O adereço é usado para pegação.

Composto majoritariamente por homens, o bloco Filhos de Gandhy tem a tradição de usar o colar como moeda de troca para "roubar" beijos na folia.

Rafael Xavier, 22, saiu no bloco que aconteceu no último domingo (19), no circuito Osmar (Campo Grande) e, acontecerá hoje, no Dodô (Barra-Ondina). Embora diga que a tradição tem um peso maior, o jovem afirma que já trocou o colar por ao menos dez beijos.

"Já beijei muito usando o colar. Tem esse significado popular de ganhar o colar pelo beijo, mas acho que representa muito mais a tradição dos Filhos de Gandhy. O colar tem um significado muito maior que isso, para história da nossa cidade."

"Quero trocar por um beijo, mas depende do beijo. A galera dá uma puxada no colar, tem um assédio, quando está com a roupa. Puxa, já vai beijando, mas sem a roupa tem um respeito", acrescenta o jovem, que pondera sobre a importância da tradição familiar.

"Meu pai sai comigo também. Ele é casado e foi difícil da minha madrasta entender no começo, mas ela sabe que não é só sair com a roupa para beijar todo mundo. Tem um significado religioso por trás."

O bloco começou em 1949 e era composto exclusivamente por homens. Inspirados nos princípios de não violência e paz, os foliões tem o ativista indiano Mahatma Gandhi como referência. Já o adereço, conhecido por "colar dos filhos de Gandhy", é para homenagear os orixás Oxalá e Ogum.

Já o folião Bruno (nome fictício), 40, ressalta o respeito em negar o colar em troca de um beijo. Ele conta que já teve o perfil de trocar o adereço por beijos, mas hoje tem consciência de que o colar faz parte de uma tradição. "Não faço mais isso hoje, porque fico receoso. Antigamente, a gente tinha mais liberdade, ficava mais a vontade, mas hoje a gente já brinca com cuidado."

'Esperamos um sinal primeiro'

A mudança de opinião também se relaciona à forma de abordar as mulheres. "Esperamos um sinal primeiro, para depois ir até a pessoa. Hoje respeitamos mais o espaço da mulher, o não sempre foi um não, mas hoje está mais radical. Uso mais como enfeite."

"Conheço a história do Gandhy, quem foi ele, o que ele fez. O que ele trouxe para o Brasil, tanto a paz quanto a representação negra. O colar representa a paz do branco e o azul a divindade. Nunca troquei um colar por um beijo, porque considero a tradição algo mais amplo. Tenho um amigo que sai no Gandhy e recebi o colar dele. Para mim isso não representa a troca pelo beijo, representa uma força muito maior da negritude", diz Leandro Rodrigues, 39.

Segundo, Uandson Santos, 39, mulheres também usam o adereço a seu favor e já chegam nele pedindo o colar.

"Tenho 15 anos saindo de gandhy. Tem essa tradição dos colares que nós trocamos pelo beijo, mas sempre com respeito. As mulheres já vieram puxando o colar. Nem precisei falar, elas já chegaram em mim pedindo o objeto", disse.

"Já beijei sete pessoas hoje. O negão aqui é pequeno, mas é encantado. Eu encanto as mulheres", completou.

'Meu beiço chega a estar dormente'

Há cinco anos saindo no bloco, Eduardo Resende, 38, revelou como chega nas mulheres e afirmou não saber quantas já beijou.

"Tá sendo muito bom esse ano, beijei acho que seis mulheres. Confesso que não contei. Eu cheguei oferecendo o colar, olhou pra mim e eu beijei. Meu beiço chega tá dormente", disse.

E a cantada? "Gatinha você tem goiaba na barriga? Não, por que? Porque você parece um sonho"

"Não tenho receio, mas também não vou sair beijando todo mundo. A gente não sabe quem é quem, né", afirmou.

Um irmão diz que beijou mais de 15, o outro jura que não beijou ninguém.

Diego Kalil, 29, é sócio do bloco há pelo menos sete anos.

"Eu acho que o beijo é relativo, independente da fantasia ou não as pessoas vão se interessar por você", conta.

"Eu não tenho receio, tomei todas as doses da vacina, me protejo, ando com listerine e é uma coisa que eu tenho e não vejo todo mundo ter. Também não vejo mulher com receio de beijar, tá bem normal isso. Acho que beijei umas 15 mulheres hoje e pretendo beijar mais", afirmou.

Já o irmão, Renato Kalil, 38, diz que no começo do bloco, o colar era apenas um presente, mas com o passar dos anos virou moeda de troca.

"Essa história que a tradição é o beijo não existe. Essa tradição é do carnaval, não é dos filhos de gandhy. A tradição não era beijo não, era um presente que dava para as mulheres e com o passar dos anos as mulheres começaram a querer o colocar em troca do beijo. Mas sempre foi um presente. Tanto que turistas gostam do colar, idosos e crianças também"

"Não saberia lhe dizer quantas eu beijei hoje, não que tenham sido muitas. Eu só não estou contando", brincou.

E o assédio? "Tenho que chegar, tem que ter iniciativa nossa e hoje em dia ainda com um cuidado maior. Qualquer contato hoje já pode ser considerado assédio, antes não era assim. Então temos que ser um pouco mais cautelosos na hora de chegar na mulher e beijar"

A vendedora Jessica Santana, 32, afirma que o preço do adereço varia entre R$ 10 (mais fino) e R$ 15 (com a bola maior). "Vendo bastante, mas no dia do [bloco] Gandhy estamos na expectativa para vender mais."

Ao serem questionados pela reportagem, muitos ambulantes dizem que o adereço é apenas um enfeite, sem nenhum significado. Mas nem todos pensam assim e aproveitam para trocar o colar por um beijo.

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