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Conheça Santa Helena, a ilha que foi o último refúgio de Napoleão Bonaparte

Vista da ilha de Santa Helena - Getty Images
Vista da ilha de Santa Helena
Imagem: Getty Images

Eduardo Vessoni

Colaboração para Nossa

29/07/2020 04h00

Por bem pouco, o imenso Jonathan não viu personagens históricos cruzarem seu caminho. Essa tartaruga-das-seychelles de quase 200 anos é um dos animais terrestres vivos mais antigos na Terra e, atualmente, mora nos jardins da residência do governador de Santa Helena.

Aquelas terras isoladas no Atlântico Sul já viram o derrotado Napoleão Bonaparte, que passaria seus últimos seis anos de vida exilado na ilha, e o jovem cientista Charles Darwin que, ao regressar de sua volta ao mundo, faria trilhas e se espantaria com a falta de árvores.

Onde todo mundo é santo

A cinco dias de navio da Cidade do Cabo, na África do Sul, Santa Helena é Território Ultramarino Britânico e uma das ilhas mais remotas do planeta.

Só para se ter uma ideia, o pedaço de terra mais próximo é a minúscula Ilha de Ascensão, a 1.125 quilômetros de distância. Já a América do Sul está a 2.900 quilômetros dali e a a costa oeste da África, a mais de dois mil quilômetros.

A ilha de Santa Helena

Com 4.577 habitantes, todos os nativos de Santa Helena são chamados de "santo", por conta do nome dado ao território descoberto pelos portugueses, em 1502.

Mas seu morador mais famoso não tem nada de sagrado no currículo.

Hóspede célebre

A posição estratégica dessa ilha a caminho para as Índias fez de Santa Helena um lugar perfeito para o exílio de prisioneiros.

Seu detento mais conhecido foi ninguém menos do que Napoleão Bonaparte.

Derrotado pelos britânicos durante a Batalha de Waterloo, esse militar morreria na ilha em 1821, vítima de câncer no estômago, em um casarão no distrito de Longwood, a poucos quilômetros da capital Jamestown.

Mapa da ilha de Santa Helena de 1815, época em que Napolão Bonaparte estava por lá - De Agostini via Getty Images - De Agostini via Getty Images
Mapa da ilha de Santa Helena de 1815, época em que Napolão Bonaparte estava por lá
Imagem: De Agostini via Getty Images

A rotina monótona durante o tempo em que Napoleão morou na ilha, entre dezembro de 1815 a maio de 1821, se resumia a leituras no jardim, caminhadas curtas nos arredores e descanso debaixo de uma azinheira que existe até hoje.

No alto de um platô, onde ventos fortes varriam a ilha e uma possível fuga de Napoleão seria impossível, o imperador francês aproveitou a temporada de exílio para ditar suas memórias, projetar o famoso jardim que circunda a casa e cuidar da horta particular, cujo excedente era compartilhado com os britânicos.

Gravura de Nicolas-Toussaint Charlet (1792-1845) mostra Napoleon Bonaparte na ilha de Santa Helena em janeiro de 1816 - De Agostini via Getty Images - De Agostini via Getty Images
Gravura de Nicolas-Toussaint Charlet (1792-1845) mostra Napoleão Bonaparte na ilha de Santa Helena em janeiro de 1816
Imagem: De Agostini via Getty Images

A última morada do militar francês, um conjunto de casas interligadas, era equipada com varanda, salas de jantar e estar (uma delas tinha até mesa de sinuca), uma biblioteca, dois quartos e banheiro.

Para acompanhar a movimentação de soldados britânicos do lado de fora, Napoleão chegou a fazer dois furos na persiana com uma faca.

Interior da casa de Napoleão Bonaparte, em Santa Helena  - Saint Helena Napoleonic Heritage - Saint Helena Napoleonic Heritage
Interior da casa de Napoleão Bonaparte, em Santa Helena
Imagem: Saint Helena Napoleonic Heritage
Figurino de Napoleão em exposição na ilha Santa Helena - Domaines nationaux français à l'île de Sainte Hélène - Domaines nationaux français à l'île de Sainte Hélène
Figurino de Napoleão em exposição na ilha Santa Helena
Imagem: Domaines nationaux français à l'île de Sainte Hélène

De acordo com a Fondation Napoleon, o governo britânico da época teria escolhido a ilha como exílio porque era tão distante que "nenhum tipo de conspiração será possível e, longe da Europa, ele será rapidamente esquecido".

Tanto não foi esquecido que a casa e a tumba de Napoleão eram alguns dos atrativos turísticos mais visitados, antes da pandemia de coronavírus. Segundo o escritório de turismo local informou ao Nossa, via e-mail, os voos comerciais de e para Santa Helena estão cancelados, devido à crise sanitária mundial.

"Foram cinco anos e meio lutando com as humilhações dos britânicos, compartilhando seu cotidiano com quase uma dúzia de pessoas", lembra o Saint Helena Napoleonic Heritage, organização sem fins lucrativos responsável pela preservação da história de Napoleão na ilha.

Nem os ratos se esqueceriam de Napoleão, um dos seus companheiros na sala de jantar.

Trazidos pelas diversas embarcações que aportaram na ilha, ao longo de sua história, esses roedores eram numerosos em Longwood. Como lembra o "santo" John Charles Melliss, em certa ocasião, um rato saltou de dentro do chapéu quando Napoleão ia colocá-lo na cabeça.

"Há ratos em todos os lugares, das margens de rios ao topo das montanhas, fazendo ninhos em buracos e no alto das árvores", descreve Melliss em seu livro "St. Helena: a Physical, Historical, and Topographical Description of the Island" (em português, "Santa Helena: uma descrição física, histórica e topográfica da ilha").

A cripta do imperador, rodeada por 12 ciprestes em memória aos 12 anos de Guerras Napoleônicas, também pode ser visitada em Santa Helena, embora os restos mortais se encontrem sob a cúpula imponente do Palácio dos Inválidos, em Paris.

Túmulo de Napoleão Bonaparte, em Santa Helena - Domaines nationaux français à l'île de Sainte Hélène - Domaines nationaux français à l'île de Sainte Hélène
Túmulo de Napoleão Bonaparte, em Santa Helena
Imagem: Domaines nationaux français à l'île de Sainte Hélène
Funeral de Napoleão Bonaparte em Santa Helena, em maio de 1821 - De Agostini via Getty Images - De Agostini via Getty Images
Funeral de Napoleão Bonaparte em Santa Helena, em maio de 1821
Imagem: De Agostini via Getty Images

Após uma longa negociação com o Reino Unido, a França adquiriu as duas propriedades relacionadas a Napoleão e, desde 1858, mantém um representante francês na ilha para administração das propriedades.

Castelo negro no meio do mar

Quinze anos depois, em 1836, Charles Darwin seria outra figura histórica que passaria por Santa Helena, após sua longa viagem de cinco anos ao redor do mundo a bordo do navio Beagle.

Vista do porto de Jamestown, na ilha de Santa Helena - Getty Images - Getty Images
Vista do porto de Jamestown, na ilha de Santa Helena, em foto de 2017
Imagem: Getty Images

Durante quatro dias de estadia, fez longas caminhadas e estudos sobre a geologia dessa ilha de origem vulcânica que, nas palavras do próprio Darwin em seus diários de bordo, "eleva-se abruptamente do oceano como um enorme castelo negro".

Não à toa, em tempos de normalidade do turismo, o destino é procurado para trilhas em meio a imensas formações rochosas desenhadas por lavas vulcânicas e dunas de areias coloridas.

Nessa mesma parada antes de seguir para a Inglaterra, o autor do clássico "A Origem das Espécies" também se surpreenderia com a rara vegetação de Santa Helena ("é tão deserto que nada exceto um relato confiável poderia me fazer acreditar que algo algum dia teria crescido ali").

Isolada, mas devastada

Mesmo distante, a natureza endêmica da ilha não conseguiu escapar da destruição.

Tudo ia bem naquelas terras verdes e férteis até que os colonos resolveram criar animais soltos e retirar lenhas das florestas locais, transformando a paisagem em um enorme semideserto, em pleno oceano.

E não foi por falta de aviso. Apenas cinquenta anos depois do estabelecimento permanente dos britânicos na ilha, em 1659, o governador John Roberts já anunciava o fim trágico da natureza ilhéu com sua profética frase "daqui a 20 anos estará totalmente arruinada por falta de madeira".

Jonathan, a tartaruga de quase 200 anos, na Ilha Santa Helena  - St Helena Tourism - St Helena Tourism
Jonathan, a tartaruga de quase 200 anos, na Ilha Santa Helena
Imagem: St Helena Tourism

A paisagem só voltaria a ganhar novos tons a partir do ano 2000 com o bem-sucedido The Millennium Forest ("A Floresta do Milênio", em português), um projeto de reflorestamento com mais de 10 mil árvores plantadas pelos 'santos' e pelos raros turistas que chegam por ali.

Em pouco tempo, essa área de 35 hectares seria expandida cerca de sete vezes seu tamanho original e veria crescer também espécies como ébano, alecrim e buxus.

Aeroporto de Santa Helena, considerado um dos mais perigosos do mundo, por conta das mudanças bruscas dos ventos na ilha  - St Helena Tourism - St Helena Tourism
Aeroporto de Santa Helena, considerado um dos mais perigosos do mundo, por conta das mudanças bruscas dos ventos na ilha
Imagem: St Helena Tourism

Em 2019, Santa Helena recebeu quase 2,5 mil turistas, número que vem crescendo desde que passou a operar voos comerciais no pequeno (e apavorante) aeroporto que fica entre penhascos, considerado um dos mais perigosos do mundo, por conta das mudanças bruscas dos ventos na ilha.

E tudo isso bem diante dos olhos da tartaruga Jonathan, que segue se alimentando sem pressa nos jardins da casa do governador.