Diabetes: qual o risco de um glicosímetro dar erro? E o que deve ser feito?

Pessoas com diabetes precisam acompanhar o comportamento da glicose para fazer um bom controle da doença. Uma forma prática de fazer isso é com o glicosímetro, aquele aparelho que faz o teste de ponta de dedo.

Embora passem por um processo rigoroso de avaliação para serem registrados e vendidos, falhas na medição podem ocorrer.

Um dos problemas é quando o aparelho indica erroneamente que a glicemia está alta sendo que, na verdade, está baixa.

Diante desse resultado, quem faz uso de insulina para tratar diabetes logo entende que precisa injetar o hormônio para diminuir o nível de glicose no sangue. Mas como a taxa já está baixa, ela vai diminuir mais e causar hipoglicemia.

Em novembro do ano passado, Juarez Mendonça da Silva, 68, mediu a glicemia duas horas após o almoço e viu um valor superior a 200. Fez a correção com insulina, mas logo começou a passar mal.

"Vi ele suando igual tampa de chaleira", conta Juliana Ferreira de Mendonça, 39, filha dele. "O dia estava muito quente e ele já transpira muito, mas achei estranho naquele dia", completa.

Em poucos minutos, ele ficou estático, com uma mão para cima segurando o celular e olhos vidrados em um quadro na parede da sala, sem responder aos chamados da filha e da esposa.

"Do nada, ele respondeu 'que saco, vocês' e jogou o celular. Aí apagou. Medimos a glicemia dele em outro aparelho e deu 40." Juliana entrou com uma ação pelo Ministério Público para reivindicar a troca de aparelho fornecido pela prefeitura, mas ainda não teve resposta.

Hipoglicemia é grave

Segundo o Manual MSD, "os sintomas de hipoglicemia raramente se manifestam antes de o nível de glicose no sangue ter caído para menos de 60 mg/dl". Então, é possível que a pessoa comece a ter hipoglicemia sem perceber e só descubra pelo glicosímetro.

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Mas um erro na medição do aparelho induz a uma decisão inadequada, que faz o nível de glicose baixar muito rapidamente. Para quem tem diabetes, o caso é grave.

Levimar Araújo, presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes, explica que a primeira fase da hipoglicemia causa taquicardia e tremores.

Se não houver melhora, o corpo entra em estado de alerta e o cérebro ativa a liberação de adrenalina para fazer o fígado secretar glicose no sangue.

Mas o nível de glicose pode ser insuficiente para superar a hipoglicemia, o que leva a um quadro de neuroglicopenia, ou seja, baixo nível de glicose no cérebro.

"O sistema nervoso entra em estado de convulsão e logo em seguida entra em coma", alerta o médico. "Tem pessoas que perdem a primeira fase e já entram convulsionando." Em casos extremos, a hipoglicemia pode matar.

Juliana conta que o pai teve convulsão, delírios e ficou agressivo. Atendido em casa pelo Samu, recebeu doses de glicose no sangue e voltou a si, mas ficou com sequelas.

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"A boca, quando se movimenta, não é toda. A fala às vezes fica embolada, a gente não entende direito o que ele fala, e o tremor nas mãos aumentou." É como se ele tivesse tido um AVC.

Casos se repetem

Além de Juliana, que mora em Vila Velha (ES), VivaBem conversou com outras três pessoas que enfrentaram o mesmo problema com o glicosímetro. Em todos os casos, o equipamento foi fornecido gratuitamente pelo SUS. Após os ocorridos, elas resolveram comprar um novo glicosímetro e fitas descartáveis —estas são sempre repostas.

Adriana Barretto, 37, de Botucatu (SP)
O aparelho começou a mostrar números altos que não condiziam com o que eu estava sentindo. Um dia eu estava me sentindo mal, com hipoglicemia, mas no aparelho dava 200 e pouco. Medi em outro aparelho e deu 63. Eu já conhecia os sintomas, então comia açúcar.

Em um site de reclamações de consumidores, pacientes de diferentes regiões do país relatam o erro em aparelhos de marcas distintas. Em janeiro, o MIDB (Movimento Influencers Diabetes Brasil) rodou uma pesquisa sobre o tema e colheu 336 respostas de pessoas de 19 estados.

Segundo o levantamento, problemas com a precisão dos resultados, hipoglicemia severa devido a números incorretos e dificuldade em configurar o medidor são os principais desafios.

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Jessica Reis, mãe de Emanuelly Vitória, 13, de Ourinhos (SP)
Um dia a escola me ligou falando que ela tinha caído e machucado a mão. Em casa, medi a glicemia e estava acima de 400. Fiz a correção de insulina e ela foi deitar. Cinco minutos depois, meu marido passou no quarto dela e encontrou ela desmaiada na cama. Chamei o Samu, que deu socorro em casa. Na verdade, a glicemia dela estava menos de 30.

A partir dos relatos, a reportagem identificou que dois aparelhos da mesma marca podem apresentar resultados diferentes. Notamos também que uma marca que funciona mal para uma pessoa pode funcionar bem para outra.

"Tenho 21 anos de diabetes tipo 1, fui diagnosticada aos 10 anos. Já usei vários glicosímetros e nunca tive problema", diz Lyvia Melo, diretora de marketing e comunicação do MIDB. Em Recife, ela também já recebeu relatos de imprecisão dos aparelhos, inclusive com a marca que ela usa e se dá bem.

Aline Cristina S.B. da Cunha, 33, do Rio de Janeiro (RJ)
No primeiro trimestre da gestação, fiz exame de sangue e minha glicose em jejum estava em 94. Iniciaram protocolo de acompanhamento e comecei a tomar insulina. No segundo trimestre, o exame de sangue em jejum deu 72 e no aparelho estava dando 107. O mapa de glicose que fiz por 15 dias estava dando altíssimo. Eu vivia com tontura, perdia peso, entrei numa dieta muito rigorosa e acho hoje que desnecessária.

Sinal de alerta

De acordo com a norma ISO 15197:2013, os medidores de glicose vendidos no Brasil não podem apresentar variação glicêmica maior do que 15% em comparação com os testes laboratoriais. No caso de Aline, a diferença chegou a quase 50%.

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"Sabemos que existe um coeficiente de variação entre a glicemia real do paciente e a que os aparelhos medem", diz o endocrinologista Joaquim Custódio da Silva Júnior, professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia), mas a grande discrepância preocupa.

"Às vezes, a gente pega aparelhos e se questiona se é realmente confiável. Pegamos a mesma gota de sangue e comparamos com outro aparelho e vemos que tem variação", relata.

Porém, ele faz uma ressalva: não é ideal comparar resultados de glicemia em dois aparelhos diferentes. "Existe o coeficiente de variação entre a glicemia real do corpo e a do aparelho é diferente de um para outro", explica.

Geralmente, a comparação é feita em casos pontuais, quando há suspeita de erro. O médico lembra, ainda, que a glicemia mais confiável é a medida em teste laboratorial, seguida pela do glicosímetro.

Avaliação dos glicosímetros

Porta-vozes de associações que representam pessoas com diabetes dizem que a imprecisão dos glicosímetros é alertada desde 2013 ao menos. A partir de 2015, as entidades começaram a se mobilizar mais fortemente para tornar o debate público, alertar pacientes e demandar avaliação dos aparelhos por parte da Anvisa.

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"Precisa ter regulamentação, a Anvisa deveria fazer teste em todos os aparelhos. Não pode circular no Brasil glicosímetro que não tem precisão", argumenta Vanessa Pirolo, coordenadora da Coalizão Vozes do Advocacy, que reúne mais de 20 associações.

Os medidores de glicose devem estar em consonância com a ISO 15197:2013 para serem registrados pela Anvisa. O documento estabelece todos os critérios para que o produto seja aprovado.

Por trás do registro, tem avaliação tanto das empresas envolvidas no processo fabril e de importação quanto dos estabelecimentos que comercializam. Também avalia a questão de desempenho dos produtos. Marcella Abreu, gerente de produtos para diagnóstico in vitro da Anvisa

O processo é rigoroso:

Os fabricantes dos aparelhos devem encaminhar à agência relatórios e documentos que demonstrem como os estudos foram realizados e comprovem boas práticas de fabricação.

Empresas no exterior devem ter uma companhia representante no Brasil, com autorização e licença de funcionamento, que também é avaliada.

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Como a Anvisa participa de um programa internacional de auditoria, órgãos qualificados são contratados para inspecionar fabricantes de produtos para a saúde fora do país.

"Hoje não temos no mercado nenhum produto que não atende esse requisito", garante Abreu.

Por que, então, alguns aparelhos apresentam problemas? "Pode ser desvio de qualidade na fabricação, forma de armazenamento e uso do produto, calibração", sugere a gerente.

Além disso, os medidores são acompanhados de tiras para teste, onde a gota de sangue é colocada. Elas também passam por avaliação e devem estar em bom estado para uso. Um alerta: cheque sempre a validade.

A Anvisa alerta que "somente deve ser utilizada a combinação de equipamento e tira que esteja indicada nas instruções de uso, sob risco de obter resultados errados caso essa indicação não seja obedecida".

Investigação depende do público

Segundo a Anvisa, há 128 sistemas de monitoramento de glicose aprovados, dos quais nove são nacionais. Após o registro, os produtos são acompanhados pela área de tecnovigilância da agência para identificar eventos adversos e queixas técnicas.

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Em 2018, o órgão cancelou o registro de 16 modelos de glicosímetros que não atendiam à norma ISO ou não apresentaram documentação necessária.

Segundo levantamento feito pela Anvisa a pedido de VivaBem, entre 2019 e 2023 a rede de tecnovigilância registrou:

  • 205 notificações relacionadas a aparelhos de glicose, das quais 23,7% eram sobre resultado incorreto ou inadequado.
  • 559 notificações referentes a aparelhos de glicose e corpos cetônicos, sendo 39,9% relativas aos números inadequados.

Porém, nesses mesmos cinco anos, a Anvisa registrou apenas 18 notificações vindas dos cidadãos relacionadas aos glicosímetros, cujo problema identificado foi erro de medição.

Tanto a agência quanto as associações de pacientes reforçam a importância de as pessoas oficializarem a reclamação no canais da Anvisa.

"A partir dessas queixas, a gente direciona as atividades que a Anvisa pode tomar", diz Abreu. Ao analisar as reclamações, a Anvisa pode submeter alguns produtos a desafio laboratorial, com análise fiscal ou de controle, conforme a Lei nº 6.437. "A participação dos usuários é importante para definir ações."

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Adriana Barretto, que é presidente da Associação Botucatuense de Assistência ao Diabético, considera a notificação necessária, mas complexa. "A gente está falando de quase 17 milhões de brasileiros com diabetes, 90% têm o tipo 2, grande parte é idoso, e quando fala que ele tem de fazer a notificação, não tem acesso à internet", diz.

Glicosímetro com erro: o que fazer?

  • Para conferir se seu aparelho está regular, consulte o portal da Anvisa: https://consultas.anvisa.gov.br
  • Se possível, teste o aparelho com uma solução controle. Trata-se de um líquido com uma concentração específica de glicose, cujo resultado já sabido deve aparecer no aparelho. Informe-se nas farmácias ou postos de saúde.
  • Diante de desvio ou suspeita, entre em contato com o fabricante e/ou fornecedor (contatos devem estar na embalagem) e reporte o problema à Anvisa pelo sistema Notivisa: https://notivisa.anvisa.gov.br/frmLogin.asp

A notificação também pode ser feita no site Fala.BR: https://falabr.cgu.gov.br

  1. Após fazer login, clique em "Ouvidoria" e depois em "Reclamação"
  2. No campo "Esfera", escolha "Federal"
  3. Escolha "Anvisa" no campo do órgão a que se destina sua reclamação
  4. Para o "Assunto", escolha "Medicamentos e Aparelhos"
  5. Em seguida, descreva seu problema em detalhes, coloque o nome completo do aparelho, número de registro e lote.
Fontes consultadas: Edvaldo Apolinário, presidente da Associação de Diabetes Sempre Amigos de Indaiatuba; Júlio Benatto, presidente da Associação dos Diabéticos de Ourinhos; e Lorena Bucher, diretora da Associação de Diabéticos do Espírito Santo.

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