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Cannabis: um remédio ou toda uma farmácia? Veja o que ela realmente trata

Anita Krepp

Colaboração para VivaBem

11/05/2023 04h00

Mais antiga que o cristianismo, a cannabis não é exatamente uma novidade, mas vem sendo tratada como tal por conta de recentes descobertas científicas. Embora os primeiros registros de uso pelo homem (na região hoje ocupada pela China) sejam de 12 mil anos atrás, foi só na década de 1960 que a planta se tornou objeto de interesse da ciência.

Na primeira metade dos anos 1960, Raphael Mechoulam, químico búlgaro radicado em Israel, sintetizou os canabinoides mais importantes da maconha: o CBD (canabidiol) e o THC (tetrahidrocanabinol).

De forma simplista: o CBD representa o medicinal, e o THC, ainda tido por parte da população como droga, é o que "dá barato" (mas isso só vai acontecer quando há uma grande concentração dessa substância).

Segundo o anuário 2022 da Kaya Mind, empresa de dados do universo canábico, lançado em novembro, em torno de 187.500 pessoas se tratam com cannabis no Brasil hoje.

Como funciona o sistema endocanabinoide?

Os seres humanos (e os outros mamíferos) têm um sistema endocanabinoide, que são neurotransmissores à base de gordura que o corpo produz. Eles atuam na modulação da inflamação, no sistema imunológico e na regulação de neurotransmissores.

Os canabinoides encontrados na cannabis podem ativar o sistema endocanabinoide. Funcionam como uma fechadura para as chaves, que podem tanto ser os endocanabinoides (produzidos pelo próprio corpo) quanto os fitocanabinoides (presentes na cannabis).

Os endocanabinoides e seus receptores estão espalhados. Em cada parte do organismo, o sistema executa tarefas diferentes.

Quando os receptores canabinoides são estimulados (recebem um sinal, veja na imagem abaixo), uma variedade de mecanismos fisiológicos ocorre. O propósito é sempre o mesmo: a estabilização do ambiente interno, independentemente das variações externas, ou seja, a homeostase (equilíbrio).

cannabis - Arte UOL - Arte UOL
Imagem: Arte UOL

Nosso organismo fabrica seus próprios canabinoides, mas o sistema pode ser suplementado por fitocanabinoides que vêm de fora, como o da planta Cannabis.

Até o momento, dois receptores canabinoides foram identificados: CB1 e CB2. Ambos são proteínas que estão embutidas na membrana das células; essas proteínas são então ligadas a outra proteína que determina a direção do sinal, seja para ativá-lo, seja para inibi-lo.

infografico viva bem corpo canabis -  -

A ligação com os receptores CB1 e CB2 confere ao THC outras características importantes:

Quando consumido em altas quantidades pode desencadear quadros de ansiedade. No entanto, estudos corroboram que o CBD neutraliza os efeitos do THC por suas propriedades ansiolíticas.

O THC também interfere na modulação e sensação da dor, ao se ligar ao CB1, que, ao ser ativado, a bloqueia.

Para quais doenças e condições a cannabis funciona?

Estão presentes na cannabis cerca de 600 compostos, entre terpenos, flavonoides e mais de 100 canabinoides dos quais a ciência ainda sabe muito pouco a respeito. Para além do THC e do CBD, os mais conhecidos e utilizados são o CBG (canabigerol), um potente anti-inflamatório; e o CBN (canabinol), difundido nos tratamentos de insônia.

Os óleos são a forma mais comum de administração da cannabis. A composição pode variar de acordo com a concentração dos canabinoides. Há também óleos ricos em outros canabinoides e a prescrição vai depender do diagnóstico do paciente.

No caso de produtos importados, há diversas outras formas de administração, já que eles são fabricados em cápsulas gelatinosas, gomas, sprays, tinturas, pastilhas, supositórios, cremes e pomadas.

Daí a grande variedade de aplicações possíveis encontradas até agora na substância, com amplo uso e investigação avançada em:

  • Epilepsia
Convulsão, epilepsia, cérebro - iStock - iStock
Imagem: iStock

Um dos estudos mais completos sobre o uso da cannabis para a epilepsia foi publicado em 2017 no The New England Journal of Medicine. Envolveu 120 crianças e jovens adultos com síndrome de Dravet, uma forma rara e grave da doença, que não estavam respondendo a outros tratamentos.

Os participantes foram divididos em dois grupos: um recebeu um extrato de cannabis com alto teor de CBD (canabidiol) e baixo teor de THC (tetrahidrocanabinol), enquanto o outro grupo recebeu um placebo. Os pacientes continuaram a tomar seus medicamentos antiepilépticos existentes enquanto participavam do estudo.

Os resultados mostraram que o grupo que recebeu o extrato de cannabis apresentou uma redução significativa na frequência de convulsões em comparação com o grupo placebo. Além disso, nenhum dos participantes que recebeu o extrato de cannabis teve efeitos colaterais graves.

  • Dor crônica
Mulher, pessoa com dor, crônica, costas, coluna - iStock - iStock
Imagem: iStock

Existem muitos estudos sobre o uso da cannabis para o tratamento da dor crônica, mas não há um único e definitivo que possa ser considerado o mais completo.

No entanto, a Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos publicou um relatório abrangente em 2017 intitulado "The Health Effects of Cannabis and Cannabinoids: The Current State of Evidence and Recommendations for Research".

O relatório revisou mais de 10 mil estudos científicos e concluiu que há evidências substanciais de que a cannabis é eficaz no tratamento da dor crônica em adultos. Além disso, um estudo publicado em 2018 na revista Clinical Psychology Review analisou 104 pesquisas sobre o uso da cannabis para o tratamento da dor crônica e concluiu que a planta pode ser eficaz no tratamento da dor neuropática e da dor associada à esclerose múltipla.

  • Esclerose múltipla
Esclerose múltipla - iStock - iStock
Imagem: iStock

Há muitos estudos sobre o uso da cannabis no tratamento da esclerose múltipla. Embora não haja um único que possa ser considerado o mais completo, alguns estudos importantes se destacam.

Um de 2012, publicado na revista Cerebrovascular Diseases, avaliou o efeito da cannabis na espasticidade em 279 pacientes. Eles receberam extrato de cannabis ou placebo durante 12 semanas. O estudo concluiu que o extrato de cannabis reduziu significativamente a espasticidade (alteração no controle muscular, caracterizada por tensão, rigidez e até incapacidade de controlar parte do corpo).

Outro estudo, publicado em 2019 na revista Neurology, envolveu 40 pacientes com a doença que tinham dor crônica. Os participantes receberam um spray oral contendo THC e CBD ou placebo por 4 semanas. O estudo concluiu que o spray oral de THC e CBD reduziu significativamente a dor crônica em comparação com o placebo.

Um estudo mais recente, publicado em 2020 na revista Multiple Sclerosis and Related Disorders, revisou 17 estudos clínicos que investigaram o uso da cannabis para esclerose múltipla. Os autores concluíram que há evidências significativas de que a cannabis pode ajudar a tratar a espasticidade e outros sintomas, mas que mais pesquisas são necessárias para determinar os efeitos a longo prazo e a segurança.

  • Pacientes de quimioterapia
Pergunte quimioterapia - Fernanda Garcia/UOL VivaBem - Fernanda Garcia/UOL VivaBem
Imagem: Fernanda Garcia/UOL VivaBem

Vários estudos avaliaram o uso da cannabis para controlar náuseas e vômitos associados à quimioterapia. Um dos mais completos foi publicado em 2007 na revista Annals of Oncology.

A pesquisa envolveu 177 pacientes com câncer. Os pacientes foram divididos em três grupos: o primeiro recebeu um spray oral contendo THC; o segundo recebeu um spray oral contendo um placebo; e o terceiro recebeu o tratamento padrão para náuseas e vômitos induzidos pela quimioterapia.

Os resultados mostraram que o grupo que recebeu o spray de THC teve uma redução significativa na frequência e intensidade dos episódios de náusea e vômito em comparação com os outros dois grupos. Além disso, os efeitos colaterais foram leves e incluíram tontura, sonolência e boca seca.

  • Ansiedade
ansiedade patológica - Getty Images - Getty Images
Imagem: Getty Images

Um estudo publicado em 2018 no Journal of Affective Disorders examinou o uso de cannabis para tratar ansiedade e depressão em pacientes com transtornos de humor. Os resultados sugeriram que a cannabis pode ser eficaz para reduzir os sintomas de ansiedade, mas não de depressão.

Outro estudo, publicado em 2020 no Journal of Clinical Psychology, avaliou o uso de cannabis medicinal para tratar a ansiedade em adultos. Os resultados indicaram que a cannabis foi associada a reduções significativas na ansiedade e no estresse.

Condições com certo nível de evidência de que cannabis ajuda a tratar, mas que ainda precisam de comprovações científicas mais robustas:

  • Autismo (TEA)
  • Fibromialgia
  • TOC
  • Síndrome de Tauret
  • Enxaqueca
  • Síndrome do intestino irritável
  • Parkinson
  • Alzheimer

Brasil é destaque na produção científica da cannabis

O calcanhar de Aquiles no tema cannabis é justamente o baixo número de estudos clínicos —muito devido ao proibicionismo, que manteve a maconha longe da ciência por décadas— que comprovem sua eficácia. Além disso, os mecanismos neurofisiológicos responsáveis pelos efeitos terapêuticos, que explicam como os canabinoides agem no sistema, ainda são pouco conhecidos.

Surpreende, no entanto, o fato de que a maior produção científica sobre cannabis no mundo é justamente brasileira, mais especificamente de um grupo de cientistas da USP de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.

Foi de lá que saiu um dos estudos mais interessantes sobre a planta durante o período de pandemia: o uso do canabidiol para prevenção e tratamento de burnout em profissionais na linha de frente do tratamento da covid-19, publicado no Jama, uma das mais importantes revistas científicas.

O grupo de cientistas da USP é pioneiro no uso experimental e clínico de canabinoides. Desde a década de 1970, vem produzindo um crescente número de publicações científicas que demonstram efeitos terapêuticos da planta. Foram os primeiros a demonstrar os efeitos ansiolíticos e antipsicóticos do CBD em animais, na década de 1970-1980, e depois em humanos, com resultados bastante promissores.

Além de ansiedade e psicose, o grupo realiza pesquisas básicas e clínicas sobre outros efeitos terapêuticos do CBD, incluindo seu potencial uso na epilepsia, dependência e abuso de drogas como a maconha e o crack, esquizofrenia, fobia social, estresse pós-traumático, depressão, transtorno bipolar, transtornos do sono e Parkinson. Também realizam estudos do CBD no seu efeito anti-inflamatório, antidiabético, antitumoral e neuroprotetor.

Boas-novas como a que chegou em dezembro do ano passado, quando a Anvisa concedeu à UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) uma autorização inédita para cultivar cannabis para fins de pesquisa da própria universidade, no entanto, anunciam uma nova era para a pesquisa e a aceitação da erva.

"Espero que esta seja uma pequena semente nesse grande celeiro de ideias que é a cannabis no Brasil. Ao demonstrar um fenômeno de outros canabinoides em processos neurofisiológicos, esperamos que aumente o interesse de indústria farmacêutica para conduzir estudos com humanos para patologias específicas", comenta o professor Claudio Queiroz, um dos coordenadores do núcleo de estudos de cannabis da UFRN, que esteve à frente do processo da autorização.

Relatos ajudam a entender como planta é promissora

O que existe em abundância são os relatos de caso. A revista Cannabis & Saúde, especializada em cannabis medicinal, fez uma lista com 30 patologias passíveis de serem tratadas com a erva.

Os resultados mais impressionantes surgem em pacientes de epilepsia e autismo. Não é exagero dizer que a cannabis muda a vida de crianças como Estrelinha, 4 anos, que tem autismo e começou a usar o CBD há dois anos.

"A socialização e o humor dela mudaram muito com o óleo", diz Rafaela França, mãe de Estrelinha e uma das fundadoras de um projeto de atendimento e suporte a famílias com filhos com deficiências da comunidade do morro do Alemão, no Rio de Janeiro.

Rafaela dá suporte à comunidade para que outras crianças tenham oportunidade de viver plenamente, assim como Estrelinha. Para manter o projeto de ajuda às outras crianças que precisam de cannabis na favela, ela criou uma vaquinha virtual.

A cannabis atende necessidades de pacientes infantis, adultos e também idosos, para este grupo funciona especialmente bem por estimular a neurogênese e a promoção de novas conexões neuronais.

Josefa Pereira tem 76 anos e sofre de artrite e alta pressão ocular. Para controlar a dor causada pela primeira doença e os riscos da segunda, começou a tomar óleo de maconha há pouco mais de seis meses. Segundo ela, "tudo melhorou".

Preconceito nunca foi um problema para Josefa, que é anafalbeta e se mantém informada através de rádio e televisão. "Vi algumas reportagens explicando o que é a planta da cannabis. Entendi que ela, como outra planta medicinal, que pode ser o boldo, por exemplo, tem várias propriedades que auxiliam a nossa saúde. Não faz sentido julgar sem ver com os próprios olhos."

O avanço dos prescritores

Muitas das especialidades médicas podem se beneficiar da inclusão da cannabis como mais uma ferramenta da sua prática clínica. O aumento do uso é um fato:

Em 2014, existiam pouco mais de 200 médicos que prescreviam o tratamento com cannabis no Brasil.

Esse número hoje ultrapassa os 26 mil profissionais, entre médicos e cirurgiões-dentistas, que são cadastrados na Anvisa para importar produtos à base de cannabis, mas isso representa pouco menos de 5% do total de médicos no país (546 mil).

De todas as especialidades médicas que se abrem para a cannabis, o psiquiatra Wilson Lessa Jr., com vasta atividade na área, tem notado um interesse especial da medicina paliativa e acredita que essa tendência deve ficar ainda mais marcada em 2023.

"Não dá para ignorar que a cannabis atua muito melhor no controle da dor e com muito menos efeitos colaterais que os opioides", explica.

Mas isso, segundo o psiquiatra, não quer dizer que a cannabis funcione para todos. Existe uma série de contraindicações, por exemplo, na gravidez ou lactância, e no uso de certas substâncias controladas. "O tratamento com cannabis é seguro desde que seja feito de forma responsável por médicos capacitados."

Hoje, há quem compre erva para lidar com uma dor nas costas chata; gente que fuma o que plantou após conseguir um habeas corpus; ou que, por meio de receita médica, importou, comprou na farmácia ou em uma associação de pacientes seu medicamento.

Mas é importante ter a consciência de que a linha tênue entre medicinal e recreativo desaparece de vez quando o sujeito fuma um cigarro de maconha para dormir melhor, por exemplo. Ou troca ansiolíticos prescritos pelo médico pela erva --que, vale lembrar, ainda é criminalizada no país.

O processo legislativo da cannabis no Brasil

A Anvisa autorizou o uso terapêutico de cannabis medicinal em maio de 2015, por meio da RDC 17/2015. Essa resolução permitiu ao paciente importar o produto mediante autorização do órgão e receita médica.

Posteriormente, a RDC 327/2019 regulamentou inclusive a venda de produtos à base de cannabis em farmácias brasileiras. Oferta ainda é limitada e cara.

Com a escassez de produtos no Brasil, a solução para os pacientes é a importação. Apesar das simplificações, é um processo que costuma levar 30 dias desde a data da consulta até a data do recebimento do produto.

Parado nas casas legislativas desde 2015, o PL 399/15 propõe uma legislação robusta para os usos medicinal e industrial da cannabis no Brasil, que inclui, entre outras coisas, o plantio da matéria-prima em território nacional, o que, de cara, vai derrubar o alto custo dos medicamentos, que deixariam de ser dependentes de importação.

De fato, o mundo inteiro está de olho em quais serão os próximos passos do Brasil na regulação da cannabis, afinal, ainda que atrasado no desenvolvimento das leis, basta que o gigante acorde para que o cenário mundial mude substancialmente.

Com características climáticas e geológicas perfeitas para o cultivo da planta, o Brasil poderia, de uma hora para outra, virar um dos maiores produtores e exportadores de cannabis do mundo.

E no resto do mundo?

Fontes adicionais consultadas: Alex Lucena, diretor de inovação da companhia The Green Hub; Paula D'all Stella, neurologista e uma das maiores especialistas em cannabis no Brasil; e Amanda Medeiros, médica da Clínica Gravital.

Revisão técnica: Daniela Fontes Bezerra, neuropediatra, mestre em ciências da saúde pela FMABC (Faculdade de Medicina do ABC); médica afiliada do departamento de neurociências da FMABC e coordenadora do ambulatório de epilepsia infantil da mesma instituição, especializado em epilepsia de difícil controle; médica assistente no Hospital Municipal Universitário de São Bernardo do Campo (SP) atuando na área de avaliações neurológicas neonatais.