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'Vivi 8 anos de trevas após sofrer lesão cerebral'; entenda a reabilitação

Franclen Girão teve traumatismo craniano e escreveu um livro para narrar a experiência - Arquivo pessoal
Franclen Girão teve traumatismo craniano e escreveu um livro para narrar a experiência Imagem: Arquivo pessoal

Bárbara Therrie

Colaboração para VivaBem

25/09/2022 04h00

Dois dias após completar 25 anos, Franclen Girão, 41, analista de sistemas, se preparava para comemorar seu aniversário quando sofreu um acidente de carro e teve traumatismo craniano. Com 10% de chance de sobrevivência, Fran se recuperou, mas teve que aprender a conviver com as sequelas deixadas pela lesão cerebral.

Este ano, o servidor público lançou o livro "Remando e Tirando a Água: A Vida Depois de um TCE", onde compartilha sua experiência e traz uma mensagem de esperança para pacientes e familiares que passaram pela mesma situação. Conheça a história dele:

"Meu aniversário de 25 anos caiu em uma sexta-feira, mas eu e um amigo, que faz aniversário no mesmo dia que eu, combinamos que comemoraríamos no domingo, em um churrasco na casa nova dele, no bairro Sacomã, em São Paulo.

No dia 16 de outubro de 2005, fui trabalhar e saí por volta do meio-dia em direção ao meu compromisso. Chegando em frente à casa do meu amigo, sofri um acidente automobilístico. Não lembro de nada, mas pelo que me contaram, um ônibus atingiu a lateral do meu carro —na parte do motorista— arrastando-o por alguns metros. Meu carro ficou preso entre o ônibus e alguns postes pequenos na esquina.

Aparentemente, parecia que eu não tinha me machucado muito, tive um corte na orelha esquerda e um pouco de sangue no rosto. O cinto de segurança arrebentou e fui parar no banco do passageiro.

Fui levado pelo Samu ao hospital mais próximo da região. Lá, constataram que meu pulmão esquerdo tinha sido perfurado, fraturei o joelho direito e fiz uma cirurgia para retirar o baço em decorrência de uma lesão.

Ao fazer a tomografia no crânio, os médicos descobriram que eu tinha sofrido um traumatismo cranioencefálico (TCE) com lesão axonal difusa (LAD). Eu tinha apenas 10% de chance de sobrevivência.

Segundo a médica que me atendeu, 90% dos pacientes que apresentam quadros como o meu, morrem nas primeiras 24 horas.

Fui transferido para outro hospital conveniado ao meu plano de saúde. Ao total, fiquei 52 dias internado, sendo 43 na UTI —passei boa parte desse tempo em coma induzido e emagreci 19 kg.

Esse período no hospital foi marcado por muita confusão mental, a começar pelo motivo que estava ali. Eu achava que tinha levado um tiro. Minha mãe me explicava que eu tinha sofrido um acidente de carro, passavam-se alguns minutos, e eu perguntava: 'Mas por que atiraram em mim?'

Franclen Girão teve traumatismo craniano - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Franclen autografando seu livro ao lado da filha Manuela
Imagem: Arquivo pessoal

Durante a internação, tive algumas intercorrências, peguei várias infecções, sofri algumas paradas cardiorrespiratórias e fiz uma traqueostomia. No dia 7 de dezembro de 2005, recebi alta e fui para casa.

Na minha cabeça, imaginei que ficaria de repouso por algumas semanas e logo tudo voltaria ao normal, mas minha reabilitação durou dez meses —fazia acompanhamento com neurologista, fisioterapia todos os dias e terapia ocupacional duas vezes por semana.

Fiquei com algumas sequelas do traumatismo craniano, uma delas foi a hemiparesia, isto é, uma paralisia parcial do lado direito que afetou meus braços e pernas, e os músculos faciais do lado esquerdo. Não tenho mais coordenação motora fina do lado direito, não consigo escrever, escovar os dentes, fazer a barba. Tive que aprender a fazer tudo com a mão esquerda.

Outra sequela está relacionada ao cansaço excessivo e a falta de equilíbrio, principalmente para descer —por conta disso não sei mais andar de bicicleta e deixei de praticar handebol, que era uma paixão. Também tive diplopia (visão dupla), mas atenuei este problema com duas cirurgias corretivas.

Outras sequelas incluíram a lentificação do pensamento —não tenho mais raciocínio rápido—, tenho dificuldades de manter o foco, atenção, concentração, fiquei com buracos na memória e minha memória recente é curta, esqueço as coisas com facilidade.

No começo, vivi uma fase de negação, depois me culpei pelo que tinha acontecido. Achava que as coisas ainda não tinham voltado ao normal porque eu era preguiçoso, estava muito 'mole' e precisava me empenhar mais para sair daquela situação.

Entrei em depressão, chorava e dizia para minha mãe: 'Por que fiquei assim? Por que não morri no acidente?'

Franclen Girão teve traumatismo craniano - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Franclen com a esposa
Imagem: Arquivo pessoal

Após dez meses em casa, voltei a trabalhar sem estar preparado e de forma precipitada. As coisas só pioraram porque minhas limitações ficaram mais evidentes. Sou analista de sistemas, a parte técnica recuperei bem, mas tinha muita dificuldade de reter novas informações e isso me frustrava. A depressão se intensificou e comecei a passar com psicólogo.

Digo que os primeiros oito anos pós-traumatismo craniano foram uma fase de trevas. Apesar de já ter ouvido falar da lesão, não conhecia qualquer pessoa que tivesse sofrido um traumatismo craniano. Isso fazia eu me sentir perdido e sozinho.

Um outro ponto é que passei pela recuperação, mas não tive um acompanhamento específico depois. Não tive profissionais que me orientaram ou me ensinaram técnicas para amenizar as limitações com as quais eu vivia.

Essa situação só mudou em 2013 quando conheci a Fernanda Ulhoa, que também teve TCE, e dá dicas e troca experiência com outras pessoas que tiveram lesão cerebral, no blog dela "Meu Cérebro Mudou". A partir daí, um mundo se abriu para mim, vi que não estava sozinho e tive uma sensação de pertencimento.

A Fernanda me levou ao CPN (Centro Paulista de Neuropsicologia), onde achei o suporte que tanto buscava. Lá, comecei a passar com psiquiatra, neuropsicóloga, participava de terapia em grupo e aprendi técnicas que melhoraram minha qualidade de vida.

Franclen Girão teve traumatismo craniano - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Franclen com a família
Imagem: Arquivo pessoal

Umas delas foi a técnica de memorização por associação, em que a gente pensava em um elemento estranho ou diferente para memorizar. Por exemplo, eu tinha uma vizinha chamada Mônica. Para lembrar o nome dela, eu a imaginava dentuça, de vestido vermelho e segurando um coelhinho azul, em referência à personagem da Turma da Mônica.

Em uma das reuniões no CPN, uma neuropsicóloga perguntou o que poderíamos fazer para ajudar outras pessoas com TCE. Tive a ideia de escrever um livro voltado para pacientes e familiares, um livro que eu gostaria de ter lido quando saí do hospital —nas minhas pesquisas, só achava literatura médica sobre o assunto. Em maio de 2022, publiquei o "Remando e Tirando a Água: A Vida Depois de um TCE", pela editora Appris.

Passados quase 17 anos, posso afirmar que há vida depois de um traumatismo craniano. Não será a mesma vida que se tinha antes, mas com suporte e apoio, é possível se reconstruir, se adaptar e seguir adiante."

Saiba mais sobre lesão cerebral

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Franclen conta que viveu 8 anos de trevas após o traumatismo craniano
Imagem: Arquivo pessoal

Uma lesão cerebral é a consequência de um machucado no cérebro, que pode ser causado por um problema externo, como uma pancada muito forte e que gera um traumatismo craniano; ou interno, como um AVC (acidente vascular cerebral), tumor, inflamação ou falta de oxigênio.

As sequelas podem ser visíveis e envolvem problemas motores, visuais e de fala; ou invisíveis, como mudanças no comportamento, no jeito de ser, na forma de lidar com as emoções, além de alterações na memória, atenção, organização, solução de problemas.

A recuperação de uma lesão cerebral acontece por fases e por longos períodos. No início, há uma recuperação espontânea, que é do próprio organismo, e depois ela ocorre pelas consequências da reabilitação.

A reabilitação é um processo colaborativo e focado em metas, isto é, o paciente, seus familiares e o profissional pensam juntos nos problemas mais urgentes e que precisam de intervenção. Quando há sequelas físicas, elas são as primeiras a serem tratadas.

Uma vez que o paciente consegue se locomover melhor e tenta realizar atividades que fazia antes da lesão cerebral, ele percebe que tem algo errado e diferente. É nesse momento, ou seja, quando coisas que eram simples de serem feitas passam a ser complexas, que começa a busca por informações.

A reabilitação neuropsicológica não é tão difundida e isso contribui para a demora no acesso a informações e tratamentos efetivos.

O objetivo final da reabilitação é o paciente ter o máximo de autonomia possível, conseguir fazer atividades que façam sentido para ele e se sentir feliz com isso. As emoções e o contexto social em que o indivíduo estão inseridos também fazem parte do processo.

O tratamento não visa apenas recuperar uma função cerebral que foi afetada, mas vê o paciente como um todo, e busca ajudar a família para lidar com as mudanças que surgiram drasticamente.

De modo geral, usam-se estratégias para melhorar a aprendizagem, lembrar as informações, lidar com sintomas de ansiedade, reduzir sintomas de depressão, auxiliar na comunicação e no planejamento do dia a dia.

Dificilmente a vida volta ao "normal" após uma lesão cerebral, existem graus variados de limitações decorrentes disso. A lesão cerebral muda a visão de vida, o funcionamento do cérebro e a maneira de interagir do indivíduo. O impacto vai depender de diversos fatores, como local e gravidade da lesão, idade, características prévias e para que o indivíduo usava o cérebro antes da lesão.

Algumas pessoas conseguem voltar para suas atividades sem grandes prejuízos, outras precisarão de tratamentos mais intensivos. Há ainda aqueles que só notarão as dificuldades após muito tempo.

Independentemente da gravidade, é importante destacar que a recuperação não tem tempo específico para acabar, a melhora é gradativa ao longo dos anos. A vida segue com algumas mudanças, mas também com novos significados e conquistas.

Fonte: Beatriz Baldivia, psicóloga, especialista em neuropsicologia e em intervenção e reabilitação neuropsicológica em lesão cerebral adquirida, vice-presidente da Abralea (Associação Brasileira de Lesão Encefálica Adquirida), doutoranda em neurologia pela USP (Universidade de São Paulo) e idealizadora do instagram @cerebromachucado.

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