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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Ela só obteve acolhimento com terapeuta negro: 'Me dei direito de chorar'

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Imagem: iStock

Brunna Mariel

Colaboração para o VivaBem

10/08/2022 04h00

Quando a empreendedora Jaciana Melquiades, 38, procurou por terapia, ela buscava compreender e lidar com a maternidade e a nova fase da vida. Escolheu um profissional, encontrou o acolhimento e a segurança para lidar com essas situações. Porém, quando o processo terapêutico evoluiu para questões mais profundas, viu suas dores de ser uma mulher negra serem silenciadas. Só sete anos depois conseguiu, de fato, fazer um tratamento efetivo. A solução: um profissional que se identificava com a sua etnia.

Em um ano de terapia com um homem negro, a empreendedora conta que o acolhimento desde a primeira consulta foi como "experimentar a normalidade". A busca por um diálogo de igual para igual trouxe reflexões sobre sua etnia, espiritualidade e um caminho de confiança para tratar sua saúde mental.

Depois de anos de terapia, foi naquele consultório que pude viver uma experiência da terapia, de deixar de lado as questões de trabalho, do cotidiano e me encontrar. Desde então, abri mão daquela mulher forte que a sociedade espera de toda mulher negra e me dei o direito de chorar. Jaciana Melquiades

A história da carioca exemplifica um fator determinante para o sucesso do tratamento psicológico: quanto mais uma pessoa é capaz de se conectar com seu psicólogo, maiores as chances de uma evolução clínica e redução do sofrimento mental.

Eliana Melcher Martins, diretora e coordenadora do Centro de Estudos em Terapia Cognitivo-Comportamental da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), explica que essa conexão não é feita exclusivamente pela identificação de etnia, gênero ou até mesmo de características e personalidade, mas pela formação do profissional.

Martins reforça que o que deve acontecer entre as quatro paredes de um consultório é o profissional ter a capacidade de se colocar no papel daquela pessoa para tratar a problemática a ser resolvida e, especialmente, ter o preparo para acolher e introduzir uma linha psicoterapêutica.

Jaciana - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Jaciana só conseguiu evoluir na terapia quando começou a fazer com um homem negro
Imagem: Arquivo pessoal

Contudo, a falta de conhecimento sobre grupos étnicos, religiosos, de gênero, de sexualidade, culturais, linguísticos e físicos pode influenciar nesse processo e trazer dificuldades no decorrer do tratamento.

O psicoterapeuta e mestrando em Saúde da População Negra e Indígena da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia) Maia Neto aponta que nem sempre a identificação com o profissional vai ser benéfica, mas ela pode preencher uma lacuna de empatia ao sofrimento do outro.

Quando o psicólogo não está preparado para lidar com questões da população minoritária da sociedade, há um risco maior de cometer algum tipo de equívoco ou até mesmo violência em um momento delicado de terapia. Maia Neto

Neto criou o projeto Psicoterapretas/os para reunir os profissionais negros do Ceará com pacientes que se sentem mais confortáveis em serem acolhidos por alguma pessoa negra ou aqueles que já passaram por racismo durante uma sessão e se afastaram do tratamento.

No caso de Jaciana, entre os silêncios e a dificuldade de verbalizar e refletir sobre suas experiências como mulher negra, a empreendedora chegou a ouvir que suas questões eram "individuais", "da sua cabeça" e viveu uma inversão de papéis: ao invés de ser atendida, acabava passando seu tempo explicando sobre questões raciais coletivas.

Maia Neto explica que o acolhimento psicológico precisa levar em consideração o cenário que cada indivíduo está inserido, mas não abrir mão do contexto social. "Somos diversos em nossas necessidades de cuidado, estamos em momentos diversos de reconhecimento racial e temos modos diferentes de lidar com o mundo."

"Me afastei da terapia por quase uma década após péssima experiência"

No caso do enfermeiro Vinicius Espirito Santos, 33, a busca pela identificação não deu certo e a falta de acolhimento correto o afastou da terapia por quase uma década.

O aracajuano buscou encontrar alguém com identificação a sua orientação sexual ou com especialização no atendimento LGBTQIA+ para lidar com um término de relacionamento no final da adolescência.

Recorreu à internet, encontrou uma profissional com afinidade no assunto e após a terceira sessão, desistiu. Os silêncios e a falta de compreensão o afastaram não apenas daquele profissional, mas de qualquer tipo de acolhimento emocional.

Anos depois, a morte do pai fez o enfermeiro entrar em um consultório psicoterápico novamente. Dessa vez, abriu mão de buscar um especialista no assunto ou em sua orientação sexual, apostou nas indicações de colegas e encontrou o acolhimento que não recebeu na adolescência.

Desde então, são cinco anos de terapia pautada pelo o que ele relata de "processo de humanidade e empatia" e consequentemente uma evolução no seu quadro psicológico. "Consegui superar o luto e retomar as questões pessoais que guardei por anos. Hoje minha terapeuta ficar em silêncio não me incomoda, pelo contrário, eu sei que ela está pensando e vai falar algo", diz Vinicius.

Segundo a psicóloga, o profissional precisa se despir de qualquer tipo de preconceito e saber que diante dele está um indivíduo que busca compreensão, acolhimento e respeito para construir uma conexão de confiança, que facilitará o processo psicoterápico seja qual for a abordagem praticada pelo psicoterapeuta.

Nem toda a indicação de amigo é válida

Martins destaca que a conexão descrita pelo enfermeiro é o caminho para um tratamento psicológico efetivo, mas que nem sempre a indicação de um profissional feita por um conhecido pode dar conta do processo. "O profissional que foi bom para o seu amigo pode não ser bom para você."

Antes da primeira consulta, é recomendado uma reflexão sobre o objetivo da procura do tratamento, qual linha da psicologia combina mais com você e qual é o perfil daquele profissional, além de checar se ele têm os registros profissionais obrigatórios.

Em busca dos seus objetivos e experimento de linhas terapêuticas que Daniela Tavares, profissional de marketing, 30, passou por quatro profissionais durante os últimos quatro anos. O objetivo não era a sua identificação com o profissional, mas acolhimentos que se encaixassem no momento de vida.

A paulistana começou a terapia para lidar com a família e amigos durante o período das eleições de 2018. Migrou para a terapia de casal para lidar com os problemas de relacionamento e, após ficar solteira, encontrou uma terapeuta sexual para se descobrir como mulher. Hoje frequenta consultas em grupo e acredita no processo terapêutico das rodas de conversa.

"Nessa jornada, eu descobri que o papel do profissional e o meu é construir um lugar onde eu possa ouvir e sentir que estou sendo ouvida e não julgada."