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Mulheres trans podem amamentar bebê; veja como funciona o tratamento

De VivaBem, em São Paulo

13/07/2022 04h00

Quando descobriu a gravidez do marido, Erika Fernandes, 28, foi logo pesquisar se poderia amamentar o filho. "Não achei casos de mulheres trans que lactaram, mas achei médicas que faziam indução da lactação", conta a empreendedora.

Em conversa com as especialistas, logo perguntou: "Sou uma mulher trans, meu esposo está grávido, ele também é trans, e queria amamentar. Eu falei: é possível? Ela falou: 'Sim, é possível'".

Ao lado do marido gestante, Roberto Bete, 32, iniciou o tratamento por volta do 5º mês da gravidez dele. Dedicada, em pouco tempo superou as expectativas da dupla responsável pela indução da amamentação. Conseguiu produzir leite após 20 dias de tratamento.

No documentário Pai Grávido, produzido por MOV, a produtora de vídeos do UOL, VivaBem, a plataforma de saúde e bem-estar do UOL, e o Núcleo de Diversidade do UOL, mostra o tratamento que Erika fez para conseguir produzir leite, além —é claro— da chegada de Noah em 10 de maio em São Paulo. O vídeo está disponível acima e no YouTube.

Entenda o tratamento para induzir produção de leite

Tradicionalmente, são utilizados três medicamentos durante o procedimento: os hormônios estrogênio e progesterona, além do remédio domperidona, que é indicado para problemas estomacais. Juntos, eles são capazes de aumentar os níveis de prolactina, hormônio responsável por induzir a produção de leite pelas glândulas mamárias, além do aumento dos seios.

Erika amamentando Noah logo após o parto - UOL - UOL
Erika amamentando Noah logo após o parto
Imagem: UOL

Como parte do tratamento, há ainda a estimulação das mamas com auxílio de uma bomba para tirar leite —parte fundamental da indução.

Mas toda a abordagem vai depender muito do paciente, conforme explica Ana Thais Vargas, endocrinologista ginecológica pela Santa Casa de São Paulo, especialista que cuidou de Erika: "Fazemos uma consulta para saber se essa pessoa é elegível ao uso das medicações. Nem todo mundo pode", diz a também médica da Clínica Lumus Cultural.

Isso quer dizer que cada paciente vai responder de uma forma ao protocolo. Então, essa questão de dosagem e quantidade de cada medicamento depende da pessoa. E apesar de serem remédios facilmente encontrados nas farmácias, de acordo com Vargas, há contraindicações para uso de hormônios e, inclusive, para a domperidona, que pode causar outros problemas de saúde.

"A gente mira num efeito colateral que é aumentar a prolactina, mas podemos acertar outro, que é a arritmia cardíaca e taquicardia. Então precisamos saber se a pessoa vai aguentar as doses diárias de domperidona", afirma.

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Como o tratamento funcionou com Erika

Erika já tomava estrogênio e progesterona por conta da transição e passou a utilizar a domperidona. Outro ponto é que a empresária também já usava o bloqueador de testosterona, medida importante para não prejudicar o processo de indução do leite. Isso por que o hormônio é capaz de inibir a produção. Tudo isso foi "facilitando" o tratamento da empresária.

E, bom, qualquer pessoa que tenha glândulas mamárias é capaz de fazer esse tratamento e, consequentemente, produzir leite.

"Como ela fazia uso de estrogênio e progesterona há algum tempo, ela já apresentava o desenvolvimento do tecido mamário, com o desenvolvimento das células da região e dos canais. Tudo que a gente precisava para que o leite fosse tanto produzido quanto escoado", explica.

Erik Trovão, endocrinologista do Hospital das Clínicas da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e membro da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia), lembra que homens trans também podem amamentar, desde que não tenham realizado a mastectomia (cirurgia de retirada das mamas) —caso de Roberto.

Caso esse homem trans deseje amamentar o bebê, é importante que ele mantenha a interrupção da testosterona. "Durante a gestação, já não pode utilizar e nem na amamentação", diz o médico. "Mas se o homem trans não for amamentar, já pode reiniciar a testosterona após o puerpério". Isso porque o uso deste hormônio pode impactar a saúde do feto.

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Qualidade do leite pode ser impactada?

Não. De acordo com a endocrinologista ginecológica, o processo no corpo da Erika é o mesmo que ocorre em mulheres cis —que se identificam com o gênero do nascimento. Quando elas começam a lactar, há estrogênio, progesterona e prolactina no corpo delas.

"Com a Erika, não estamos usando hormônios externos. O processo de lactação que ela faz é estimular o corpo a produzir a prolactina dela, e isso é que vai fazer com que as células mamárias produzam leite. E nesse leite não tem nenhum hormônio que também não esteja no corpo de outras pessoas gerando leite", explica a médica.

Além disso, é preciso ficar claro que a terapia hormonal de mulher trans não impacta em nada neste processo. A quantidade de progesterona e estrogênio utilizados na reposição é a mesma quantidade que mulheres cis possuem no organismo. "Não há nada adicionado ao leite produzido por ela", reforça a especialista.

Como funciona a parte não medicamentosa

Ao lado da médica Ana Thais, Kely Carvalho, fonoaudióloga e consultora internacional de amamentação, explica que a parte não medicamentosa é tão importante quanto o uso dos remédios. É um tratamento conjunto. Em sua área de atendimento ela auxilia os pacientes com exercícios para estimulação mamária, inclusive com orientação após o nascimento do bebê.

"É a parte mais chata e com menos adesão", diz. A consultora conta que, às vezes, a pessoa aparece empolgada dizendo que vai seguir tudo corretamente, realizando as estimulações 10 vezes por dia, por exemplo, mas, com o tempo, isso vai ficando difícil, pois exige muita dedicação.

Erika fez tratamento de indução com ajuda de bombas de tirar leite - UOL - UOL
Erika fez tratamento de indução com ajuda de bombas de tirar leite
Imagem: UOL

"Mas é o que vai fazer diferença: a estimulação mecânica das mamas, com o uso de bombas de tirar leite, de preferência elétrica", diz a também consultora da Clínica Lumus Cultural. Esse aparelho simula a forma que um bebê mama e, assim, auxilia na produção do leite.

De acordo com Carvalho, o protocolo tradicional prega que é necessário começar seis semanas antes do nascimento do bebê, mas isso também pode variar. "Quando uma pessoa não pode fazer uso de hormônios, a gente começa o uso da bomba mais cedo", diz.

A fonoaudióloga conta ainda que é papel dela ir controlando o número de "ordenhadas" por dia, sugerindo mais vezes, por exemplo. Ela também trabalha com as expectativas da chegada do bebê, sempre reforçando a importância da amamentação.

"Não é só colocar o bebê no peito. Então, a gente tem que fazer uma avaliação da mamada, da boquinha, da sucção e se ele vai ter dificuldade", explica Carvalho.

Dedicação é fundamental no tratamento

Nem sempre é fácil amamentar. Pode ser difícil para algumas mulheres e Erika sempre soube disso.

"Por mais que as pessoas falassem 'você é louca, a amamentação é a pior parte, não é nem ter o bebê'. Falavam que ia doer, que o peito fica ferido e precisa ficar acordando de duas em duas horas, mas falei: 'Eu quero. Quero ter essa conexão, quero participar da evolução do meu filho'", lembra a empresária.

E o processo tem dado certo. Inclusive, Erika gerou mais leite do que o esperado e de forma considerada rápida —a substância chegou a empedrar. Em 20 dias, usando a bomba três vezes ao dia por 15 minutos, ela começou a lactar. E desde o parto de Noah, em 10 de maio, ele vem mamando diariamente.

Papai grávido 2, Roberto e Erika - UOL - UOL
Erika e Roberto logo após nascimento de Noah
Imagem: UOL

Existe um tempo para começar o tratamento?

Erika começou o tratamento no 5º mês da gravidez de Roberto, mas, segundo as médicas, sempre é possível começar. Idealmente, o protocolo que as duas seguem sugere o início por volta da 15ª semana de gestação até a 20ª —aproximadamente entre o 3º e 5º mês.

"Mas pode ser iniciado a qualquer momento. Já recebemos paciente que começou na 34ª semana e outros que estavam na 8ª semana", explica a ginecologista.

E se não der certo? Há outras opções?

O leite materno, de fato, é o alimento mais importante nos primeiros meses de vida do bebê. Isso porque previne diversas doenças, como diarreias, infecções respiratórias e alergias. Ele também diminui o risco de hipertensão, colesterol alto e diabetes, além de reduzir o risco de desenvolver obesidade. Ainda há evidências de que o aleitamento materno contribui para o desenvolvimento cognitivo dos bebês.

No entanto, para quem não consegue produzir o leite ou oferecê-lo ao recém-nascido, existem outras estratégias, como o uso de fórmula, um leite produzido e fabricado para quando isso ocorre.

Casal com o filho Noah - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Casal com o filho Noah
Imagem: Arquivo pessoal

Esse mesmo produto pode ser utilizado quando o leite produzido pela pessoa não é suficiente para alimentar o bebê, conforme explica Moises Chencinski, pediatra e membro do Departamento Científico de Aleitamento Materno da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria).

"A fórmula entra como um complemento, com a intenção de que seja algo provisório até essa pessoa voltar a produzir leite. É sempre importante ter acompanhamento de um profissional de saúde materno infantil", afirma.

Outra estratégia que pode ser abordada é o uso de sonda, chamada de translactação, segundo Chencinski. Essa sonda, geralmente de silicone, é colocada ao lado do mamilo, simulando uma amamentação tradicional, e está ligada a um recipiente com leite dentro.

Segundo o pediatra e a consultora de amamentação, essa estratégia é utilizada quando a produção de leite é insuficiente para o bebê, além de ser uma forma de estimular as mamas (como já era feito antes do nascimento), pois o bebê coloca a boca no mamilo e entra em contato com a sonda para se alimentar.

Importante lembrar que, caso não dê certo, não é preciso se preocupar com o vínculo com o bebê, segundo os especialistas. "Não precisa amamentar para ter vínculo. Isso acontece pelo cuidado, pelo olhar, pelo dia a dia", diz Carvalho.

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