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'Memória fotográfica': afinal, o cérebro pode funcionar como uma câmera?

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Imagem: iStock

Camila Mazzotto

Colaboração para VivaBem

28/04/2022 04h00

É provável que você já tenha ouvido falar ou até conheça alguém que afirma possuir "memória fotográfica". O termo é popularmente utilizado para se referir a pessoas que relatam se lembrar de determinadas cenas com uma riqueza de detalhes, mesmo após meses ou anos desde o ocorrido —como se os momentos fossem "congelados" na mente por um longo período de tempo com a nitidez de uma fotografia recém-tirada. Mas será que a memória pode ser comparada a uma câmera fotográfica?

César Alexis Galera, especialista em estrutura da memória e professor do Departamento de Psicologia da FFCLRP-USP (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo), diz que, embora seja muito raro, algumas pessoas de fato têm uma memória naturalmente acima da média. No entanto, não existem evidências científicas o suficiente para afirmar que a memória possa ser, na prática, "fotográfica".

É preciso voltar alguns séculos no tempo para entender de onde veio essa comparação. Um capítulo do livro "Caçadores de Neuromitos: o que você sabe sobre seu cérebro é verdade" (2015), dedicado à memória fotográfica, coescrito por Galera, esclarece que as explicações sobre o funcionamento cognitivo, incluindo a memória, sempre se apoiaram em metáforas, que geralmente refletem as tecnologias mais avançadas de cada época.

Há registros de que os gregos, por exemplo, comparavam a memória aos blocos de cera usados na época para escrever. Com a fotografia, não foi diferente: depois que o francês Joseph Niépce obteve o que hoje é considerada a primeira fotografia, em 1826, médicos e psiquiatras não demoraram a associar a memória às características da nova invenção, considerada "precisa, automática e durável".

Atualmente, no entanto, é consenso entre os cientistas que uma câmera fotográfica talvez não seja o melhor objeto para se referir à memória, um dos assuntos mais complexos da neurociência.

"O cérebro não funciona nem como uma câmera fotográfica, nem como uma câmera de vídeo. Também não funciona como um telefone celular, tampouco como um computador", afirma Martín Cammarota, chefe do Laboratório de Pesquisa da Memória do ICe-UFRN (Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte).

Por que a memória não é como uma fotografia

Memória fotográfia, inteligência artificial - iStock - iStock
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Uma das definições neurobiológicas mais aceitas acerca do que são as memórias é a de que elas seriam representações neurais do nosso passado.

Essa, contudo, também não é uma definição perfeita. Segundo Cammarota, um dos problemas de entendê-la como uma representação é que, ao contrário de uma fotografia, as memórias não são 100% estáticas e precisas.

Embora possam ser armazenadas em um traço de memória estável e duradouro (através de um processo denominado consolidação), elas são passíveis de mudar, incorporando ou perdendo informações com o passar do tempo, por exemplo.

"Uma representação retórica dura o tempo que o suporte físico que a mantém dura, como um quadro ou uma fotografia, mas nossa memória pode mudar. E isso acontece de forma dinâmica. Memórias não são representações fixas", diz o biólogo.

Para Cristiane Furini, pesquisadora do Laboratório de Cognição e Neurobiologia da Memória do InsCer (Instituto do Cérebro) da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), outro aspecto que não nos permite comparar memórias a fotografias é que a formação delas em nosso cérebro é muito mais complexa do que o mero "congelamento" de uma imagem ou momento específico.

"Quando estamos fazendo o reconhecimento ou armazenando uma nova informação, também estamos associando essa nova informação com informações parecidas que já tínhamos armazenadas no cérebro. Então, vamos criando conexões entre as novas informações e aquelas que já existem, e formando memórias também em cima disso", explica a cientista.

Portanto, a formação de memórias seria menos parecida com uma fotografia única e mais como uma espécie de "álbum" sendo formado, que conecta fotos antigas às novas.

Segundo Furini, geralmente armazenamos com maior riqueza de detalhes e por mais tempo em nosso cérebro informações que despertam nosso interesse, por exemplo, ou que têm maior conteúdo emocional: o nascimento de um filho, o dia em que se passou no vestibular, a ocasião em que se foi vítima de um assalto...

Outras memórias, por outro lado, perdem suas particularidades ou desaparecem em pouco tempo —é a chamada memória de curto prazo—, como o local onde você estacionou seu carro da última vez em que foi ao supermercado ou o discurso de uma palestra tediosa.

Na maioria dos casos, temos uma tendência a guardar apenas os aspectos mais significativos de nossas experiências: via de regra, esquecemos detalhes irrelevantes em poucos segundos. Por exemplo: pode ser que você não se lembre das palavras exatas de uma conversa que teve no mês passado com um motorista de aplicativo, mas provavelmente é capaz de se recordar do assunto sobre o qual conversaram.

Esse cenário só muda nos casos de uma síndrome rara chamada "Memória Autobiográfica Altamente Superior" (HSAM, na sigla em inglês). Também conhecida como hipertimesia ou síndrome da supermemória, a condição neurológica faz com que as pessoas acometidas por ela sejam capazes de se lembrar de absolutamente tudo que fizeram em qualquer data.

Nesses casos únicos, embora os indivíduos consigam trazer à tona inúmeros detalhes de eventos de suas vidas —o que estavam fazendo em cada hora do dia 10 de janeiro de 2019, por exemplo—, não são excepcionais em memorizar informações impessoais, como listas de compras. Ou seja, suas memórias são autocentradas.

E, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, uma memória excepcional nem sempre é benéfica em sua totalidade. O pesquisador Galera cita "Funes, o Memorioso" (1944), de Jorge Luis Borges, como exemplo. O conto narra a história de um rapaz que, após ter sido derrubado por um cavalo, adquiriu uma memória "infinita": podia se lembrar de tudo o que havia vivido, além de saber de cor inúmeros textos e aprender com rapidez dezenas de idiomas.

No entanto, não conseguia articular o conhecimento que sabia. "Borges diz que ele tinha uma memória fantástica, mas ele desconfia que o Furnes era incapaz de pensar, porque 'pensar é abstrair, abstrair é ignorar as diferenças' e ele não fazia isso. Ele pensava no concreto. Isso também é o que se vê fora da ficção: quem tem uma memória maciça, uma 'memória fotográfica' absurda, fica preso nos detalhes e não abstrai, o que dificulta muito o pensamento", analisa.

Há relatos de 'memória fotográfica' na história?

Há cerca de 100 anos, segundo Galera, o neuropsicólogo Alexander Romanovich Luria registrou um dos primeiros indícios de uma memória com ares supostamente fotográficos, no livro "A Mente de um Mnemonista". Na obra, o médico descreve o caso do jornalista russo Solomon Shereshevsky.

S., como ficou conhecido, tinha uma característica que chamava a atenção de seu chefe: ao contrário dos colegas, ele não anotava nada do que o superior dizia durante as reuniões, porque afirmava se recordar de cada palavra do que havia sido dito. Intrigado, o chefe enviou o funcionário para ser testado pelo pai da neuropsicologia moderna, Alexander Romanovich Luria.

Daí veio o espanto: submetido aos testes, o russo se mostrou capaz de memorizar centenas de palavras ou números e repeti-los sem erros depois de dias, meses ou até décadas, assim como também os repetiu na ordem inversa. Era como se tivesse tirado uma fotografia dos papéis.

Embora muito acima de qualquer outro caso já relatado, no entanto, atualmente acredita-se que a memória de S. não era resultado de uma estrutura cerebral diferente. Era, sobretudo, fruto de muito treino —assim como a maioria das pessoas que relatam ter uma memória acima do normal, diz Galera.

Quando decidiu se tornar um mnemonista profissional, S. adotou uma série de estratégias para armazenar uma grande quantidade de dados (leia mais sobre técnicas mnemônicas no final do texto). A sinestesia, uma condição de que sofria, também oferecia ao jornalista estratégias de codificação mais eficientes, embora prejudicasse o convívio social: cada som que ele ouvia era acompanhado de sensações visuais, gustativas e táteis únicas, como se sentisse "o peso" das palavras em seu próprio corpo.

Stephen Wiltshire em ação - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Stephen Wiltshire em ação
Imagem: Reprodução/Facebook

E ele não é o único caso conhecido de memória visual excepcional. A literatura científica também reconhece habilidades semelhantes entre autistas que possuem genialidade extrema, conhecidos como autistas "savant" ("sábio", em francês). É o caso, por exemplo, do britânico Stephen Wiltshire.

Com uma capacidade extraordinária para o desenho desde criança, o artista geralmente precisa de um único olhar para reproduzir paisagens urbanas altamente detalhistas e complexas. Mas sua memória visual não é perfeita: por mais ricas em detalhes que sejam, as ilustrações não são cópias tão fiéis quanto as fotografias, com acréscimos e também omissões em relação à realidade concreta.

Em 1922, o psicólogo Erich Jaensch também descreveu um fenômeno conhecido como "memória eidética", geralmente confundido com o termo "memória fotográfica". Essa capacidade se confirmou existir pelo menos entre crianças pequenas. Uma pequena porcentagem delas, depois de ver uma imagem por cerca de 30 segundos, conseguia imediatamente depois descrevê-la em grande detalhe, como se seus olhos ainda estivessem contemplando a figura.

Mas essa "imagem mental" não era perfeita e parecia desaparecer após alguns poucos minutos.

Outra pessoa que aparentava possuir uma memória eidética supostamente perfeita, segundo o livro "Caçadores de Neuromitos: o que você sabe sobre seu cérebro é verdade", era uma professora de artes chamada Elizabeth. Seu caso foi apresentado em 1970 na revista científica Nature pelo cientista Charles Stromeyer.

Stromeyer mostrou ao olho direito de Elizabeth um padrão de 10 mil pontos aleatórios e, um dia depois, mostrou outro padrão de pontos ao olho esquerdo. Ela mentalmente fundiu as duas imagens para formar um estereograma de pontos aleatórios e, então, foi capaz de enxergar uma imagem tridimensional flutuando acima da superfície —um feito surpreendente.

No entanto, depois dessa demonstração, Elizabeth se casou com o cientista e nunca mais aceitou ser testada —por isso, alguns pesquisadores, como Galera, sugerem que o caso tenha sido uma fraude.

Uma pergunta em aberto

dormir, dormindo bem, dormindo gostoso - iStock - iStock
Memórias se consolidam durante o sono
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Então, existe ou não existe memória fotográfica ou eidética? Para Galera, a melhor maneira de responder a essa questão é dizer que os indícios, até o momento, não permitem afirmar a existência desses fenômenos, mas já temos instrumentos para identificá-los.

"Não podemos dizer que esses fenômenos não existem, porque pode ser que exista e, se houver um caso, hoje podemos investigá-lo melhor. É assim que funciona o pensamento científico: não dá para dizer que não existem cisnes negros com base na observação de uma amostra de mil gansos brancos. Talvez existam pessoas que têm memórias visuais absolutamente fantásticas, quase fotográficas, mas convivem com isso achando que todo mundo tem uma memória igual a delas", diz o pesquisador.

Embora não haja evidências robustas para afirmar que existe memória fotográfica, os três especialistas em memória ouvidos por VivaBem indicam estratégias para ajudar seu cérebro a lembrar mais do que vê:

  • Use técnicas mnemônicas: úteis em provas, são sistemas e truques que tornam a informação mais fácil de recordar. Um tipo comum é quando a primeira letra de cada palavra em uma frase é também a primeira letra de cada palavra em uma lista que precisa ser memorizada. Por exemplo, muita gente aprendeu as fórmulas trigonométricas referentes ao seno, cosseno e tangente usando a frase "Corri, caí na coca": corri refere-se à "co/hip" (seno), caí à "ca/hipotenusa" (cosseno), e coca à "co/ca" (tangente). A regra de ouro é associar aquilo que você está aprendendo (no caso, trigonometria) àquilo que já faz parte do seu vocabulário/repertório (no exemplo dado, as palavras corri, caí e coca).
  • Aprenda coisas novas: quando aprendemos algo, como um idioma, novas conexões se formam entre os neurônios, exercitando a memória.
  • Preste mais atenção naquilo que quer armazenar: o nível de profundidade com que uma informação ficará armazenada no seu cérebro depende, entre outras coisas, do quanto você dedicou atenção àquilo. Se ao invés de se concentrar no livro que está lendo, você se distrai e começa a pensar na lista de afazeres do dia seguinte, se lembrar do conteúdo da obra mais tarde, por exemplo, será tarefa quase impossível.
  • Durma, se alimente bem e faça atividade física: estudos têm mostrado que o combo sono regular, alimentação saudável e vida ativa também trazem benefícios à memória. Afinal, é durante o sono que as memórias se consolidam; a dieta pode ser uma aliada do cérebro (com o consumo de peixes, por exemplo) e a atividade física está associada à formação de novos neurônios.