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Saúde

Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


Após odisseia por diagnóstico, adolescente dá palestras sobre doença rara

Renata Turbiani

Colaboração para VivaBem

07/03/2021 04h00

A saga pelo diagnóstico de uma doença rara é longa e dolorosa na maioria das vezes. Com o adolescente Pietro Nave Inglese, 14, não foi diferente. Após o nascimento, sua família levou três anos para finalmente descobrir o que ele tinha: raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X.

A seguir, seu pai, Paulo Inglese Gonçalves Júnior, profissional de TI, 42, conta como foi essa busca e os desafios que a família enfrentou para lidar com a doença e conseguir um tratamento mais eficaz, que lhe garante uma melhor qualidade de vida.

"O nosso primeiro filho, o Pietro, nasceu em janeiro de 2006. A gestação foi bem normal e tranquila, por isso, eu e minha esposa, a Débora, jamais imaginamos que poderia haver algo errado. Mas nos primeiros meses de vida, notamos que ele, conforme crescia, não ficava durinho como os demais bebês.

Seu pescoço, por exemplo, era muito mole. Procuramos alguns médicos e eles nos disseram que cada criança se desenvolve de uma maneira e que não devíamos nos preocupar.

Ele também demorou para andar. Isso aconteceu quando já tinha quase dois anos e, neste período, suas pernas começaram a entortar. Fomos atrás de mais médicos, de várias especialidades. Um deles insistiu que a deformação estava sendo causada pelas fraldas e que, quando ele parasse de usá-las, iria endireitar.

Outro afirmou que o problema era hidrocefalia e nos encaminhou para a Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais), mas sabíamos que ele não tinha os sintomas dessa doença.

Pietro Nave Inglese, 14, tem raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Não aceitamos nenhuma dessas respostas e continuamos atrás de uma explicação. Chegamos até um doutor que desconfiou de raquitismo. Como ele não era especialista no assunto, nos recomendou que procurássemos um e indicou Mauro Borghi, endocrinologista da Santa Casa de São Paulo.

Na primeira consulta ele pediu um monte de exames mais específicos e, finalmente, depois de meses de luta, tivemos um diagnóstico. Era mesmo raquitismo, mas o do tipo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X.

Quando soubemos, sentimos um misto de alívio e tristeza. Apesar de ser rara, enfim a patologia dele tinha um nome e não era tão agressiva assim, mas, ao mesmo tempo, era algo que mereceria cuidados para o resto das nossas vidas.

Tendo essa informação, investigamos mais a fundo e descobrimos que a minha esposa tem essa doença, mas nela não se manifestou, e que a mãe dela e uma tia também tinham.

O raquitismo é genético, e nesse que o Pietro tem, o corpo elimina pela urina a maioria do fósforo produzido. A questão é que a falta desse nutriente faz os ossos ficarem fracos, compromete o crescimento, dá dores de cabeça fortíssimas e provoca uma série de alterações na parte motora e até problemas dentários. Meu filho tem só 14 anos e já fez dois procedimentos de canal.

Assim que chegaram os resultados dos exames iniciamos o tratamento. Na época, a opção que havia era a reposição de fosfato por via oral —até existe uma versão líquida, mas tem vários efeitos colaterais. Ele tinha que tomar quatro comprimidos a cada quatro horas, mas imagina o sacrifício que era isso para uma criança de três anos.

Para facilitar, eu e minha esposa, toda quarta-feira, fazíamos uma sessão de trituração do remédio. Batíamos até que virasse um pó e aí podíamos colocar na mamadeira dele. Na época a gente brincava que se a polícia aparecesse em casa naquele dia, e nos encontrasse mexendo com um pó branco, nos prenderia na hora.

Essa foi nossa rotina durante anos. Só quando o Pietro cresceu um pouco mais que passou a tomar os comprimidos normalmente. Mas o duro é que todo esse esforço não valeu muito a pena, porque a condição dele melhorou bem pouco, fora que ele teve de passar por três cirurgias para tentar endireitar as pernas.

Novo tratamento

Pietro Nave Inglese, 14, tem raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Faço parte de vários grupos sobre raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X (XLH) e através deles soube que um novo medicamento, o burosumabe, bem mais eficiente para essa doença, tinha sido aprovado nos Estados Unidos.

Temos parentes no país e começamos a ver como seria o processo para mandar o Pietro para lá por um tempo para fazer o tratamento. Mas aí, no começo de 2019, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) liberou o uso no Brasil.

Num primeiro momento foi uma alegria enorme, mas durou pouco. Esse medicamento não está disponível pelo SUS (Sistema Único de Saúde), ele é pago. Até aí, tudo bem, o problema é que cada dose custa R$ 60 mil e meu filho precisa tomar duas por mês. É mais de R$ 1,4 milhão por ano. Não temos condições de arcar com esse valor.

A solução foi entrar com uma ação para que o governo pagasse. Ficamos nessa briga durante alguns meses e, em novembro de 2019, recebemos um parecer favorável. A primeira dose chegou para a gente em junho de 2020.

E esse remédio realmente faz toda a diferença. Quando ele recebeu a segunda aplicação já notamos melhoras. O nível de fosfato deu normal, as pernas começaram a endireitar e a dor de cabeça parou. Antes, o Pietro não conseguia agachar, agora faz isso e também passou a andar melhor e até cresceu na altura. As mudanças são visíveis.

Ele vai precisar desse medicamento para o resto da vida ou até que surja outro tratamento melhor. Só que agora enfrentamos uma nova situação. A primeira leva do burosumabe ele tomou certinho, mas acabou em novembro, e o governo não entregou a seguinte. Toda vez que entro em contato me dizem que está atrasado por causa da pandemia. Estamos meio sem saber o que fazer.

O que gostaríamos muito que acontecesse é que ele fosse disponibilizado no SUS. Isso ajudaria não só a nossa família, mas todas que precisam. A ANS (Agência Nacional de Saúde) abriu uma consulta pública para incluí-lo. Ficamos bem otimistas, mas a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias) deu um parecer inicial desfavorável em relação a essa recomendação. No momento, estamos aguardando o resultado final desse processo.

Na nossa luta contra a doença, começamos a participar de várias associações e grupos. E pelo fato de o Pietro ser uma criança diferenciada, ser muito desenvolvo e encarar a sua condição de forma leve, algumas pessoas nos convidam para dar palestras sobre o raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X.

Fizemos várias em dois anos, inclusive na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) e no evento da organização XLH Network para a América Latina.

Meu filho, mesmo só tendo 14 anos, tem o 'dom' para isso e gosta de compartilhar seu cotidiano e experiências com as pessoas. Durante algum tempo, ele chegou a sofrer bullying na escola, por ser pequeno e ter as pernas arqueadas, mas soube se virar muito bem.

Claro que nem tudo é fácil, tem um estresse físico e emocional muito grande por trás, mas aprendemos a lidar com a situação e fazemos o possível para levarmos uma vida normal. Até por isso, e mesmo correndo o risco de passar por tudo novamente, decidimos ter outro filho. O Enrico nasceu há três anos e saudável."

O que é o raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X?

Pietro Nave Inglese, 14, tem raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Pernas de Pietro ficaram tortas por causa da doença rara
Imagem: Arquivo pessoal

Também conhecido como XLH (são as iniciais da enfermidade em inglês, X-Linked Hypophosphatemia), o raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X é uma doença genética resultante de uma mutação que inativa um dos genes no cromossomo X, como sua nomenclatura adianta.

"Dentro desse cromossomo tem mais de dois mil genes e o que causa essa alteração é o PHEX, responsável pela produção de uma enzima de mesmo nome e que é fundamental para regular o fosfato no nosso organismo", explica Salmo Raskin, presidente do Departamento Científico de Genética da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria).

Segundo o médico, esse erro genético bastante raro —afeta uma a cada 20 mil pessoas—, é herdado do pai ou da mãe em 80% dos casos e, em 20%, acontece como "acidente" na formação do óvulo ou esperma que dará origem ao indivíduo.

Nas pessoas que nascem com ele, o que acontece é que o rim não consegue controlar o fósforo corretamente e acaba o eliminando em excesso pela urina. Com isso, seus níveis no sangue ficam muito baixos, levando ao desenvolvimento anormal dos ossos.

As manifestações da patologia geralmente são notadas quando a criança começa a querer ficar em pé e a andar. Elas incluem: pernas arqueadas, baixa estatura, velocidade de crescimento reduzida, dor óssea e muscular, fraqueza, dificuldade para andar, abcessos dentais espontâneos, crescimento irregular do crânio, alargamento dos punhos, joelhos e tornozelos e perda auditiva.

Na fase adulta, caso a condição não tenha sido bem controlada na infância —antes do crescimento ósseo cessar e as deformidades tornarem-se irreversíveis—, os pacientes ainda podem ter sintomas graves como calcificações de tendões e fraturas, decorrentes da fragilidade óssea, e dores persistentes.

O diagnóstico se dá por meio de exame clínico e complementar (sangue, radiografia e, se possível, teste genético) e é importante que seja feito o mais precocemente possível. "Infelizmente, as famílias passam por uma verdadeira odisseia antes de descobrirem. Isso, na verdade, vale para todas as doenças raras, já que muitos médicos não têm conhecimento ou não são treinados para identificá-las", aponta Raskin.

Quanto ao tratamento, o convencional é feito através da suplementação de fósforo e calcitriol. Porém, segundo o médico, ele não é muito efetivo e pode gerar acúmulo de cálcio no rim e, consequentemente, provocar o surgimento de pedras, entre outros complicações.

Mais recente, o burosumabe apresenta melhores resultados, mas é preciso ficar claro que ele não representa a resolução do problema. A sua função é apenas aumentar a reabsorção de fosfato pelos rins e, por meio da produção de vitamina D, melhorar a absorção intestinal tanto de cálcio quanto de fosfato, reduzindo, assim, os danos causados pela HLX.

Por ser hereditária e não ter cura, o presidente do Departamento Científico de Genética da SBP recomenda que todos os casais que têm casos na família e queiram ter filhos ou que já tenham filhos com a doença façam um aconselhamento genético.

"Não estou dizendo que eles não devem engravidar, mas é importante que saibam qual o risco de a criança nascer com o raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X", completa.

No dia 19 de fevereiro, o Ministério da Saúde publicou no Diário Oficial da União a decisão de incorporar o burosumabe no âmbito do SUS para o tratamento do raquitismo hipofosfatêmico ligada ao cromossomo X em crianças, conforme Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas. A decisão não engloba adultos com a doença.