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O luto da dúvida: como lidar com a ausência de um familiar desaparecido?

Lenivanda Souza Andrade usando camiseta com rosto da filha Gisela Andrade de Jesus, desaparecida desde 2010 - Arquivo pessoal
Lenivanda Souza Andrade usando camiseta com rosto da filha Gisela Andrade de Jesus, desaparecida desde 2010 Imagem: Arquivo pessoal

Roseane Santos

Colaboração para o VivaBem

20/02/2021 04h00

Apesar de o fato não ser tão recente, a auxiliar de serviços gerais, Lenivanda Souza Andrade, 43, fala ainda com a voz embargada sobre o desaparecimento da filha Gisela Andrade de Jesus, que ocorreu em 2010. "É muito difícil tocar nesse assunto. Ela estava com oito anos. Quando sumiu, eu estava grávida. Foi um desespero pra mim, mas Deus me sustentou a todo o momento. Meu filho nasceu e passou a ser meu apoio. Vou lidando com minha saudade. Tenho dois filhos hoje, mas todo dia vem a esperança que ela volte. Enquanto não há corpo, há vida. Creio que em algum lugar, ela deve estar", lamenta.

Assim como Andrade, milhares de pessoas sofrem com o sentimento provocado pela perda de um ente querido: a ausência. Ela é uma mistura de saudade e de angustia e pode ser comparado a um buraco sem fundo, segundo o psicólogo Gilberto Fernandes, da ONG Mães do Brasil, instituição que atua no combate ao desaparecimento de crianças e jovens. "A falta preenche mais que a presença de quem ficou", diz.

O especialista comenta que a pessoa passa viver em função do desaparecimento. Ela procura por vários lugares, fica sem dormir, perde a fome, não tem vontade de trabalhar e de viver. Muitas vezes ainda existe a questão da culpa. "Ela se sente culpada porque deixou o filho na padaria e ele não voltou, ou que permitiu que fosse a uma festa".

O empreendedor social Nicolas Raline, 30, que perdeu a irmã, diz que é impossível pensar se qualquer detalhe poderia fazer a diferença naquela tragédia. "Talvez se ela estivesse comigo, ou se esperasse cinco minutos ou não tivesse ido à frente", questiona-se.

Quando ele tinha 12 anos, sua irmã Amanda, então com 9, foi até mercado e não voltou. "Além dela, eu tenho dois irmãos que são gêmeos e são 10 anos mais novos. Na época, eles tinham 2 anos de idade. Apesar da tristeza, eu não pude viver o luto, pois minha mãe ficou muito desestabilizada e meu pai deve que continuar a trabalhar para pagar as contas. Substitui o papel de mãe e me tornei o responsável pelos meus irmãos". Raline se tornou ativamente participante na ONG Mães do Brasil e hoje coordena o projeto Gente do Amanhã, que ajuda adolescentes carentes na colocação no mercado de trabalho.

Seguindo em frente

Fernandes tem uma missão especial na ONG, que é lidar com a sensação de ausência e com luto de quem perdeu alguém: "O meu trabalho não traz quem se foi, mas procura reintegrar ao mundo quem ficou. Ela terá que conviver com aquele buraco enquanto ele durar". Segundo ele, esse "buraco" fica aberto enquanto não houver uma resposta definitiva. "Quando se encontra o corpo, o buraco se fecha e vem o luto de fato".

Ele destaca a importância de colocar a pessoa novamente na sua rotina social. "Não tiro a esperança, porque é um direito da mãe acreditar que o filho pode voltar. O que tentamos fazer é que elas continuem acreditando na vida e que percebam que o desaparecimento é uma história, mas que ela pertence também a outras histórias com maridos, outros filhos, pais", enfatiza.

O psicólogo lembra que existem outros sentimentos conflitantes nesse percurso. "Se a questão está em aberto, tem sempre uma dúvida angustiante do "Será como ele está?". As pessoas se perguntam se quem se perdeu está com frio, se está alimentando bem. Muitas vezes, elas não conseguem admitir que podem estar felizes, enquanto seu filho ou filha pode estar sofrendo.

Amor de mãe

A psicóloga Sandra Rodrigues de Oliveira defendeu a sua tese de mestrado da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) com o tema "Onde Está Você Agora Além de Aqui, Dentro de Mim? O Luto de Mães de Crianças Desaparecidas". O trabalho foi realizado através de uma pesquisa de campo de caráter qualitativo, com colaboração da FIA (Fundação para Infância e Adolescência), mais especificamente do programa SOS Crianças Desaparecidas.

O objetivo era investigar o impacto do desaparecimento de um filho através da ótica da mãe e qual impacto que isso trazia para ela e sua família. Para chegar às conclusões, Oliveira entrevistou 11 mulheres e, diferente de Fernandes, ela pontua que o luto se instala, mesmo sem a constatação da morte. "É importante dizer que a vivência do desaparecimento é sim um luto. Primeiro, porque luto não se refere apenas a casos de morte, e segundo, porque há uma ausência que gera nos familiares e amigos a sensação de uma presença constante".

De acordo com ela, a convivência foi interrompida, mas por não se saber como, onde e por que essa pessoa desapareceu, fica ainda mais em evidência no seio familiar.

Oliveira ressalta que o desaparecimento é um fenômeno mais complexo do que a morte, pois envolve uma série de sentimentos ambíguos, como desesperança, tristeza, sofrimento, culpa, raiva, impotência e medo acentuados, todos coexistindo com esperança e fé no reencontro. "Este é um luto marcado pela oscilação e segue sem interrupção enquanto a situação permanece incerta", diz.

Tratamento

De acordo com Oliveira, como em qualquer luto, não há uma fórmula exata para os enlutados, pois cada perda é vivida de forma única por cada um —isso acontece por conta da história individual prévia de perdas, dos recursos de enfrentamento disponíveis (internos e externos) e principalmente quando se avalia quem, quando, onde, como e por que a perda ocorreu.

O mais importante é reconhecer que a perda por desaparecimento é um luto e, a partir disso, dar o suporte às famílias. "Quando essa perda não é reconhecida socialmente, os enlutados sentem-se desorientados, estigmatizados e excluídos, o que representa um fator de risco adicional à saúde mental", diz ela.

Como em todos os tipos de luto, pode ser necessário que o enlutado recorra à ajuda psicológica e psiquiátrica. O profissional de saúde que acompanha esses casos deve estar atento às particularidades desse tipo de situação. "É uma perda em aberto, o que impede que possamos estabelecer um tempo de luto", informa a psicóloga. Os profissionais podem criar um espaço onde os diferentes cenários possam ser avaliados, com a volta ou sem a volta do ausente, e quais as implicações disso. "Acolher os medos e anseios diante da ausência, a raiva pela indefinição, a culpa por achar que poderiam ter feito algo para impedir. Se possível, reunir essa família, identificar as diferenças para ajudá-los".