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OPINIÃO

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A tragédia do litoral norte: luto, empatia e julgamento

Bombeiros trabalham em Barra do Sahy após deslizamentos na região - Baltazar/Futura Press/Estadão Conteúdo
Bombeiros trabalham em Barra do Sahy após deslizamentos na região Imagem: Baltazar/Futura Press/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

02/03/2023 04h00

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O som constante dos helicópteros voando muito baixo, de manhã até o escurecer, foi a música triste do Carnaval de cinzas que passamos este ano na Barra do Sahy, litoral norte de São Paulo. Totalmente segura com minha família em uma casa de um condomínio na rua principal da praia, tenho a exata noção do privilégio que foi estar a salvo a poucos metros da tragédia, que até agora contabiliza 65 mortos, centenas de casas destruídas, famílias e futuros desfeitos. Nosso sentimento era um misto de alívio, angústia e... culpa.

Ao longo dos dias marcados pelo ir e vir de helicópteros, que levavam corpos e feridos, acompanhamos as notícias dos desmoronamentos no Sahy e em outras praias, igualmente atingidas. Vimos muita tristeza, desespero e também muita solidariedade: desde os voluntários, moradores ou turistas, que foram ajudar a cavar a lama com as mãos, até os restaurantes, chefs generosos (salve Chef Eudes pelo lindo trabalho!) e seus mutirões de marmitas, doações de alimentos e produtos de limpeza, casas de veraneio sendo oferecidas para os desabrigados.

Havia muita fila nos pequenos mercados desfalcados da região e muita lama por toda rua. Moradores colavam nos portões de suas casas seus logins e senhas de wi-fi para permitir que quem perdera o sinal das operadoras pudesse se comunicar com suas famílias.

O sol voltou um tanto tímido dois dias depois do temporal e algumas pessoas se arriscaram a ir à praia. As águas ainda marrons do mar do Sahy estavam repletas de barcos que transportavam gente ilhada e traziam mantimentos a serem doados. Aqui e ali, porém, alguns poucos turistas estendiam suas esteiras, abriam uma cervejinha, batiam bola. A vida que segue? Um filmete de um rapaz dançando sob um guarda-sol em uma das praias atingidas viralizou nas redes e foi usado como recado indignado da prefeitura de São Sebastião: "Não é hora de dançar! Mais empatia, por favor!", pedia a legenda.

Foi pensando nesse apelo, bem como na demanda das autoridades locais para que ninguém fosse para o litoral nos próximos dias, que achei importante falarmos aqui sobre o "protocolo do luto". A gente costuma repetir que o luto é singular e não deve ser regido por um manual de certo e errado. Confesso que, em um primeiro momento, julguei inadequada a atitude do veranista dançando em um momento tão triste. Mas depois me perguntei se a "bronca" da prefeitura fazia mesmo sentido, e fui conversar com uma das maiores especialistas em crises, emergências e desastres do pais, a psicóloga e doutora Elaine Gomes dos Reis Alves, para entender melhor sobre o comportamento correto em um cenário de tragédia.

Elaine, acostumada a vivenciar in loco, como profissional, cenas de desastres (por uma triste coincidência, há um ano eu a entrevistei sobre um desabamento igualmente trágico em Petrópolis, Rio de Janeiro), foi além da simples imagem do turista acusado de falta de empatia. "O que foi feito com esse post foi um julgamento. E, como tal, já está errado. Sabe aquela coisa de criticar quem conta piada em velório?", pergunta a psicóloga. "Pois é, por que não? Rir, dançar e celebrar não deve configurar uma afronta ao luto. Tudo depende das circunstâncias. Como nesse e em outros casos são desconhecidas, torna-se muito injusto esse juízo de valor. Sabe-se lá por que esse rapaz estava dançando. Será que o riso e aquela piada no velório não se referem a alguma memória afetuosa do próprio morto?".

Ainda na análise da imagem, mesmo que a publicação não identificasse o personagem em questão, tanto ele quanto as pessoas que estavam ao seu lado facilmente se auto-identificarão e se sentirão símbolos de falta de empatia. "Será que ele não tinha o direito de ir à praia? Alguém foi falar com ele e perguntar por que estava ali?", questiona.

Pergunto a Elaine se esse tipo de comportamento não seria movido por falta de empatia. Ela me fala, em primeiro lugar, do real significado do termo empatia em um cenário de desastre. Se empatia é se colocar no lugar do outro, no caso de uma tragédia ou perda avassaladora, é praticamente impossível de ser experimentada. "A gente faz esse exercício na nossa prática e o que acontece é que a dor é tamanha que a pessoa que está tentando se imaginar ali (sendo engolida pela lama, perdendo um filho, perdendo a casa etc.) não aguenta e para no meio. Só quem de fato vive aquela realidade é quem não tem como parar no meio. Só sabe o que se sente é quem foi obrigado a sentir."

O termo mais adequado em situações como a catástrofe do litoral norte é respeito. Esse respeito pode ser traduzido em forma de doações ou de gestos solidários como receber e abrigar famílias que perderam tudo.

"Na minha opinião", diz Elaine, "a mensagem do poder público pedindo solidariedade e respeito às vitimas de uma tragédia é muito importante. Mas não através de uma imagem aleatória que parte de um julgamento. Acredito que essa é uma forma de piorar as coisas que já estão tão ruins. É preciso que a gente se lembre que não é proibido comemorar porque tem gente sofrendo. Achei que foi um marketing ruim."

A mensagem correta, conclui Elaine, é em direção ao respeito ao sofrimento alheio. E isso tem mais a ver com prover assistência e conter violência e exploração do que condenar celebrações aleatórias.