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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Temos que encarar sem tabu as perdas da velhice

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

02/02/2023 04h00

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Na semana passada, cientistas do Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência do King's College, em Londres, no Reino Unido, anunciaram a descoberta de um teste de sangue que é capaz de identificar o risco de Alzheimer em uma pessoa até 3,5 anos antes do diagnóstico clínico da doença.

Entendo que é um grande progresso e que deve conduzir a maiores possibilidades de tratamento precoce para um mal que, entre outros efeitos degenerativos no nosso cérebro, afeta cada vez mais a população mundial (segundo a Organização Mundial de Saúde, 55 milhões de pessoas no mundo vivem com algum tipo de demência).

No entanto, peço licença para uma reflexão a partir da minha visão leiga sobre essa conquista da medicina: vejo esse avanço na detecção, mais do que uma esperança iminente de cura, como um aliado na preparação para lidar melhor com o que vem pela frente, como um aprendizado para o processo de luto que vamos enfrentar com a perda daquilo que é o nosso bem mais precioso na vida: a saúde mental.

A gente vem discutindo —e postergando— a velhice como uma forma natural de evolução do homem. Nunca vivemos tanto e as perspectivas de longevidade só aumentam. Assim, talvez nem caiba mais a definição de idoso no Brasil a partir dos 60 anos, idade em que a maioria das pessoas ainda goza de plena condição de saúde e autonomia.

Mas o aumento da expectativa de vida não é, de forma alguma, apenas o triunfo que gostamos de celebrar. O que desejamos comemorar é viver mais e melhor. Ou pelo menos sem as privações que atingem a maioria das populações octogenárias, nonagenárias e centenárias.

Gostamos muito de torcer pela vida mais longa e menos de falar das inevitáveis perdas que essa extensão acarreta. O envelhecimento a partir de 80 ou 90 anos, salvo raras exceções, traz danos físicos e psíquicos. Perdemos força, papel social, músculos e memória. Perdemos a companhia de amigos que partem antes de nós, de cônjuges, familiares e do mundo tal como o conhecíamos.

Como não falamos sem preconceito sobre essas perdas, não admitimos o luto por elas como um processo tão inevitável quanto pela morte de um ente querido. A velhice exige a reorganização do nosso lugar na sociedade e na família. E ninguém conversa com o idoso a esse respeito. Nem com os seus filhos e prováveis cuidadores, igualmente despreparados para lidar com o luto dos velhos ou com o seu próprio luto de perder, a cada dia, o pai, a mãe e os avós que antes eram os seus provedores de cuidado.

Segundo o IBGE, em 2030, haverá no Brasil mais idosos do que pessoas de até 14 anos. Entre esse idosos, muitos estarão em situação de dependência, e delegados a uma geração que ainda não aprendeu a cuidar deles. Eis o paradoxo. Quanto mais vivemos, mais nos deparamos com os aspectos negativos da vida sem autonomia e menos sabemos como e com quem enfrentá-los.

Discutimos hoje com muita prodigalidade novas formas de parentalidade, novas formas de criar filhos no novo século, mas ainda não conversamos sobre como cuidar direito dos nossos velhos. Não me refiro apenas sobre o cuidado básico, seu acolhimento em casa ou instituições —o que já é bastante complicado para a maioria das famílias. Mas sobre como nos relacionar da melhor maneira possível com aqueles que, acometidos por algum tipo de senilidade e demência, serão muito diferentes daqueles pais que nos criaram.

Esses pais e avós não nos ensinaram como ampará-los porque, na sua grande maioria, perderam os seus mais cedo, antes da degeneração das suas funções cognitivas. Em uma perda progressiva de memória, eles se tornarão, mesmo quando não totalmente senis, bem diferentes do que foram.

Temos que admitir e autorizar nosso luto por aqueles que já não estão mais ali, embora vivos. Deveríamos, mesmo sem reconhecê-los ou sermos reconhecidos, aprender a desenvolver novos laços, sem pretender inutilmente que voltem a ser o que eram.

Estabelecer essas novas relações é um desafio gigante. Tanto da parte dos velhos, como de seus cuidadores. E, por isso, volto à detecção precoce do Alzheimer. Conhecer e antecipar seus efeitos degenerativos pode ajudar quem venha a sofrer da doença e as pessoas que estarão em torno. Pode ajudar pais e filhos a vivenciarem seus lutos e aprender como se preparar para as perdas. Pode, no mínimo, nos ensinar a falar mais e sem tabu sobre o assunto.