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Vamos Falar Sobre o Luto?

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como encarar o novo normal no trabalho depois de uma perda

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Imagem: Unsplash

Colunista do UOL

14/07/2022 04h00

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"À caminho do hospital, de onde me ligaram para dizer que minha filha sofrera um acidente e que eu deveria ir imediatamente para lá, fui passando por ruas movimentadas da cidade. Era madrugada e eu via as luzes acesas, olhava para os bares abertos e lotados, as pessoas rindo e conversando nas calçadas e pensava: 'não aconteceu nada com ela, é claro. Do contrário, o mundo não continuaria assim... normal."

Ouvi esse relato de uma mãe em um grupo de enlutados e entendi a lógica de seu pensamento mágico: é muito difícil, para quem perde alguém querido, constatar que a vida "normal" segue alheia ao seu drama pessoal. Como assim o mundo não acabou aqui?

É um soco na cara no início e um desafio gigante no processo. Não por acaso, o retorno ao trabalho é um dos passos mais complexos do luto. Retomar a atividade profissional, seja qual for, é o choque de normalidade que melhor reflete, para o bem e para o mal, a vida que segue.

Independentemente de quantos dias alguém se manteve afastado ou afastada, se trabalha com pessoas adoráveis ou nem tanto, se é um ambiente mais ou menos formal, o fato é que seu luto vai acompanhá-lo nesse retorno. Entre pares, chefes, parceiros, projetos e tarefas... normais. Alguns dias vão ser melhores outros serão piores. Por um bom tempo.

Só saber que isso é "normal", ou pelo menos é o seu "novo normal", pode aliviar bastante. Por meio de inúmeras entrevistas com enlutados e conversas com especialistas, reunimos alguns insights e dicas de como tornar o retorno à "normalidade" menos complicado. Vamos lá:

Espere menos de si mesmo

O luto do cérebro é real. Há uma alteração no seu sistema cognitivo que pode levar um tempo para se recompor. Se tiver a expectativa de recomeçar exatamente de onde parou, pode se frustrar e somar mais essa camada de dor ao seu luto.

Talvez sinta a memória falhar ou não tenha nenhuma ideia genial para acrescentar em uma reunião, e está tudo bem. Se sua atividade exige contato permanente com o público e uma performance radiante todo o tempo, talvez seja importante se afastar temporariamente de funções para as quais ainda não se sinta ainda preparado.

Num mundo mais ou menos perfeito, as pessoas tendem a demonstrar empatia e podem surpreende-lo com sua tolerância para esse remanejamento.

Defina uma pessoa do trabalho para ser seu porta-voz

Antes de voltar, escolha alguém próximo entre colegas e/ou chefes para uma conversa franca sobre como se sente e como gostaria de ser recebido e tratado na sua volta. A não ser que prefira conversar com todo mundo sobre sua perda e dividir sua história com cada um, o que pode ser exaustivo, essa pessoa pode dar as informações que você julgar pertinentes em seu lugar.

Uma ou mais pessoas-chave também podem evitar situações constrangedoras que costumam tornar a vida do enlutado mais difícil, como as pessoas pararem de rir e conversar animadamente em uma rodinha quando você se aproxima ou evitarem subir no mesmo elevador para não precisar encará-lo (sim, isso aconteceu comigo diversas vezes).

Cuidado, porém, com o telefone sem fio. Lembro-me do caso de uma amiga que pediu a sua chefe que orientasse a equipe a não encará-la com ar de piedade e cara de velório em seu retorno e o resultado foi que todos entenderam que deveriam ignorar seu luto e a receberam alegremente, sem sequer mencionar a perda que havia sofrido ou expressar seus sentimentos!

Não tome decisões radicais

Não se deve confiar cegamente na sua aptidão para avaliar de forma serena alguma questão que exija uma ação. Se tiver alguma decisão importante a tomar, converse com pares ou chefes, submeta-a antes a alguém cuja opinião você respeita.

Mude sua rotina

Mesmo que seja uma pequena mudança, de horário ou espaço físico, será o suficiente para afastar a percepção incômoda de que tudo continua exatamente como era antes da sua perda.

Crie rotas de fuga

Seu local de trabalho tem algum espaço privado? Uma sala dedicada, por exemplo, à amamentação? Algum lugar em que você possa se fechar por alguns minutos com privacidade e respirar em silêncio? Mesmo que você ache que não esteja precisando, planejar intervalos curtos e regulares ao longo do dia para prestar atenção em você mesmo pode acalentar sua mente e diluir a angústia.

Não esconda o elefante na sala

Assim que você voltar, ele virá a tiracolo e será inútil tentar escondê-lo. Melhor assumi-lo e fazer com que as pessoas não se intimidem com sua presença.

Entenda que é difícil para muitas pessoas saber o que dizer a um enlutado e não espere que todos tenham alguma palavra significativa para dizer. Vale responder brevemente a uma manifestação de pêsames. Se não estiver disposto a falar sobre seu luto, seja direto e diga apenas isso: não gostaria de falar sobre isso neste momento.

Não dê espaço aos fiscais de sentimentos

Algumas pessoas (elas estão por toda a parte e podem estar no seu trabalho, por que não?) vão querer orientá-lo sobre como deve ou não se sentir. Vão avaliar se está se agindo, falando, rindo ou chorando de acordo com um protocolo que tiraram sabe-se lá de onde. Fuja delas.

Evite a brigada do "pelo menos"

Como não sabem o que dizer, muitos fatalmente dirão bobagens e platitudes que pretendem minimizar a sua dor. Se alguém se aproximar com uma frase que comece com "pelo menos", como pelo menos ele/ela não sofreu, está num lugar melhor, deixou filhos maravilhosos, teve uma vida plena, não hesite em se afastar. A única pessoa autorizada a usar o "pelo menos" em relação a sua perda é você mesmo. Ignore as demais.

Afaste-se dos competidores nas olimpíadas da tristeza

Sempre haverá alguém por perto para tentar relativizar sua dor e ostentar alguma maior, vivida por ele ou alguém muito próximo. Apenas se afaste e tente, se possível, não odiá-las.

Rejeite a medalha de bravura

Algumas pessoas tentarão colocá-lo em um pedestal de força e enaltecerão sua força ou coragem para enfrentar esse momento difícil. Não se sinta obrigado a vestir esse personagem heroico. Permita-se agir como quem você é: alguém que não tem outra opção além de buscar a resiliência possível e encontrar espaço para sofrer sem culpa.