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Nuno Cobra Jr

Correr não é melhor que caminhar

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Colunista do VivaBem

15/10/2020 04h00

Recentemente, tive acesso a um texto de René Descartes, filósofo, matemático e cientista que viveu no século 16, um dos fundadores do racionalismo e peça chave no desenvolvimento da ciência moderna. Para minha surpresa, encontrei ali os mesmos fundamentos para a "regra de ouro" do treinamento físico, como chamamos em nosso método, aquilo que batizei como a teoria da escada, explicada em detalhes no último texto aqui em minha coluna.

Na teoria desenvolvida por ele, a maneira mais eficiente de superar qualquer desafio, por mais complexo que seja, é dividir essa tarefa em quantas partes forem necessárias, de forma realista e viável, resultando em tarefas diárias que sejam equilibradas e moderadas, sem exagero, sob pena de perder rendimento no dia seguinte e, dessa forma, perder a constância, nomeada por ele como o grande segredo do sucesso em qualquer área do conhecimento humano.

Nesse artigo, quero desfazer algumas das principais distorções criadas pelo mercado do treinamento, levando os alunos a seguirem mitos que não fazem nenhum sentido para a ciência da preparação física, caso o treinador desenvolva uma visão mais profunda e integrada desse processo.

E aqui surge o primeiro choque de realidade: para mais de 90% da população, uma caminhada seria mais eficiente e produtiva do que a corrida, caso se pense em um processo de treinamento cardiovascular realmente saudável, equilibrado, científico, lógico e gradativo. Essa grande maioria da população é constituída por alunos sedentários, obesos, com sobrepeso ou pessoas sem qualquer adaptação à corrida, uma atividade exigente e de alto impacto articular.

Na corrida, o aluno coloca todo o peso do seu corpo sobre apenas uma das pernas, alternadamente, o que significa, em uma corrida extremamente lenta, a 7 km/h, uma carga de 7 vezes o seu peso corporal, agindo sobre a articulação do joelho, a principal estrutura de absorção de impacto nesse tipo de atividade. Ou seja, para um aluno que pesa 100 kg, a carga em seu joelho será de 700 kg, o que é algo temerário e não recomendado, caso se pense em longevidade, adesão e saúde no treinamento.

Se formos mais longe e incluirmos nessa análise a visão de um cardiologista, a corrida em débito de oxigênio será apontada como algo que pode trazer graves riscos e diversos malefícios ao coração, no caso desse grupo específico. Mas quem se importa com o coração quando a barriga é mais visível e saliente?

E aqui surge a explicação por trás desse mito: como o mercado adota modelos entendidos como mais comerciais e apelativos, convidando o aluno a acelerar os resultados estéticos, sempre medidos em termos de calorias gastas, o aluno passa a ter certeza de que a corrida será mais eficiente, criando o mito de que quanto mais calorias um exercício queime, melhor ele será, o que é uma grande falácia.

Conheça a última moda do treinamento!

As matérias mais populares na área do treinamento fazem referência a novidades que prometem acelerar os resultados e aumentar o gasto calórico, exatamente aquilo que pode ter efeitos catastróficos no grupo que abrange mais de 90% da população, impedindo um desenvolvimento orgânico, saudável e gradativo, dificultando imensamente que o aluno consiga aderir ao treinamento, aquilo que, no fim, seria o mais importante. Afinal, como ter motivação para voltar no dia seguinte se o treinamento proposto lhe causa imensa dor e um sofrimento indescritível?

Certa vez, um aluno que estava 20 kg acima do peso me relatou as suas tentativas de tentar correr, me dizendo não acreditar como alguém pode gostar de correr, afinal, no seu ponto de vista, a corrida representava uma tortura cruel, levando a uma sensação insuportável de dor muscular e síncope cardíaca, como se o seu coração fosse saltar para fora da boca, conforme seu relato. Em todas as tentativas, o seu joelho não aguentou o tranco, após alguns meses.

E aqui surge a primeira advertência: não corra, de forma alguma, caso você esteja mais de 10 kg acima do peso, afinal a caminhada já fará subir os seus batimentos cardíacos a um patamar suficientemente produtivo, tanto em relação à perda calórica, quanto à adaptação ideal ao treinamento cardiovascular.

Existe uma fórmula simples para medir isso, caso os seus batimentos estejam 50% acima do seu batimento em repouso, o treinamento cardiovascular está em um nível ideal, ou seja, caso o seu batimento em repouso seja de 80 bpm (batimentos por minuto), caminhar em 110 ou 120 bpm já seria ótimo, o ideal para uma evolução saudável e consistente, e, só bem mais tarde, se iniciaria o processo de adaptação à corrida, caso o seu peso corporal permita.

Na realidade, não se pode comparar coisas diferentes, sendo que, na questão aqui levantada, existe um agravante: a caminhada deveria ser uma etapa anterior à corrida, ou seja, ninguém deveria iniciar a adaptação à corrida antes de esgotar os benefícios da caminhada, sendo que esse processo pode demorar de um a dois anos, no caso da maioria da população, permitindo, assim, uma perfeita adaptação cardiovascular, muscular e articular ao treinamento.

Para explicar, de forma didática, seria como um bebê querer andar antes de engatinhar, ou seja, pular a caminhada seria pular uma etapa essencial nesse processo. Como pode perceber, embora isso não seja muito mercadológico, os grupos de corrida deveriam se chamar grupos de caminhada e corrida.

Os artesãos do treinamento

A pressa e o imediatismo destroem os princípios fundamentais do treinamento físico. Cada vez mais, me sinto herdeiro de um conhecimento perdido que está se extinguindo, uma forma artesanal e altamente eficiente de treinamento cardiovascular, aquilo que o meu pai, Nuno Cobra, chama de alicerce cardiovascular, um respeito imenso aos princípios fundamentais da graduação e adaptação ao treinamento.

Atualmente, os maiores estudiosos já tiveram acesso a um dos grandes segredos no treinamento dos maiores atletas de longa distância, seja bike, seja corrida, seja natação. Isso veio a público após um TED feito por Stephen Seiler, um grande fisiologista norte- americano, provando que mais de 80% do treinamento desses atletas ocorre em baixa intensidade, ou seja, em equilíbrio de oxigênio e conforto respiratório. Ou seja, se um treinamento cardiovascular estressa o seu coração, causando desconforto respiratório extremo, ele não poderia ser chamado de um modelo produtivo, tampouco ser considerado como uma forma saudável de treinamento.

Para unir eficiência e saúde no treinamento cardiovascular o ideal seria que o processo de inspiração e expiração ocorresse a cada três passos, em um equilíbrio de oxigênio chamado de treinamento aeróbio, abaixo do primeiro limiar anaeróbio, no qual não existe desconforto excessivo e você não está ofegante.

Podemos chegar a um resultado positivo pulando etapas essenciais de um processo? O que faz um bom consultor? Dá aquilo que o cliente pede ou dá aquilo que é melhor para ele?

A nossa visão do treinamento físico é antagônica à visão hegemônica, por isso o choque de realidade. Na visão mercadológica do fast training, um produto é cuidadosamente pensado para agradar as massas, ganhando uma roupagem comercial e apelativa, ao gosto do cliente, propagando uma mentalidade que acaba prejudicando um processo natural, orgânico e racional de treinamento. Por que o nosso modelo é tão diferente? Para explicar de forma didática, seria a diferença entre comprar um pão no supermercado, um produto em linha industrial, ou fazê-lo à mão em casa, de forma artesanal, com produtos orgânicos e naturais.

Para citar alguns exemplos, podemos falar sobre o treinamento cardiovascular do Ayrton Senna, do qual pude participar, junto com meu pai. Após cinco anos de treinamento, Senna atingiu o VO2 (quantidade de oxigênio que passa pelo coração a cada minuto) de 70 ml, sempre correndo em equilíbrio de oxigênio e conforto respiratório, algo comparável a um maratonista, o que lhe trazia uma grande vantagem na pista. Detalhe: durante apenas um ano o seu treino de corrida atingiu duas horas de duração, na maior parte do tempo ele tinha de 60 minutos a 90 minutos de duração.

Outro exemplo é o piloto Guilherme Samaia, que atualmente compete na Fórmula 2, a um passo da Fórmula 1. Quando começamos em 2015, ele não tinha nenhuma resistência cardiovascular, vindo de um treinamento fitness stantard, com treinos curtos e de alta intensidade, o seu batimento cardíaco atingia 170 bpm, em uma corrida extremamente leve.

Após três anos de treinamento, ele foi fazer um teste de resistência cardiovascular em um dos maiores centros de treinamento na Europa, o Fórmula Medicine, sendo um dos únicos seis atletas da história desse centro a terminar o teste com nota máxima. No departamento de fortalecimento muscular ocorreu o mesmo processo, ao realizar um teste de força na equipe de novas promessas da Ferrari, ao lado de alguns dos maiores atletas, ele fez 44 subidas na barra em um minuto, mesmo sem nunca treinar um número tão alto de repetições, atingindo a nota máxima, o segundo lugar fez apenas 15 subidas. Detalhe: quase todo o seu treinamento de força era realizado de forma natural e funcional, sem o uso de pesos.

Como podemos constatar, um modelo de treinamento natural, equilibrado, sensato e realmente artesanal está em extinção em todo o mundo, não só aqui.

O que será dos artesãos do treinamento físico?