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Lucas Veiga

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como o medo do abandono interfere nos relacionamentos e na autoestima?

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

19/10/2021 04h00

O medo do abandono é uma questão que comparece bastante na clínica. Seja de forma velada ou direta, fato é que as pessoas, em alguma medida, por vezes, temem ser deixadas pelo parceiro ou parceira. Sem dúvida, o modo de vida contemporâneo, ainda muito influenciado pela lógica colonial de expropriação e descarte e intensificada pelo capitalismo, pode produzir em nós a sensação de que assim como os objetos também seremos usados e descartados pelo outro.

Para além disso, a fantasia de que existiriam corpos e estilos de vida perfeitos, tal como difundidos em larga escala pelas redes sociais, pode gerar a sensação de estarmos sempre aquém desta idealização e que, portanto, a qualquer momento poderíamos vir a ser trocados por alguém que corresponda à imagem e semelhança deste ideal, por definição, inalcançável.

Vivências de abandono na infância também são outro elemento que pode contribuir para o medo do abandono na vida adulta. É comum pessoas que experimentaram abandono parental quando crianças permanecerem tão ligadas a esta experiência que a sensação de que serão deixadas novamente as persegue e se mistura com baixa autoestima e complexo de inferioridade.

Lidando com a crença no abandono iminente, fica difícil estar em uma relação porque, independentemente das demonstrações de afeto que se receba, do companheirismo e da reciprocidade desenvolvidos no relacionamento, o abandônico —termo que o psiquiatra Frantz Fanon utiliza para se referir a quem teme ser abandonado —não consegue confiar no outro porque, em última instância, não confia em si mesmo, no seu próprio senso de valor.

Diante deste quadro complexo, podemos pensar em duas direções para a lida com este medo.

Na primeira, a crença e a familiaridade com o abandono são tão grandes que a pessoa só se sente tranquila quando o abandono de fato acontece. Por já ter vivenciado a situação anteriormente, na infância ou em relacionamentos anteriores, a pessoa cria uma conexão com o abandono e somente por meio de sua confirmação ela experimenta, ainda que no plano do inconsciente, alguma segurança de si, seja abandonando, seja sendo abandonada. Esse indivíduo vive os relacionamentos à espera do abandono e, para se proteger disso, não se permite amar e ser amado ou, como diz Fanon, faz tudo quanto é inconscientemente necessário para o abandono se concretizar.

Em uma segunda direção, a pessoa toma consciência deste estado e se engaja em processos de cuidado. A terapia é uma ferramenta importante por ser um espaço de cuidado e de elaboração das vivências, e de produção de sentido para as experiências de vida, de modo a diminuir a tendência à repetição de situações dolorosas ou traumáticas. Conversar abertamente com o parceiro ou parceira sobre o medo do abandono também é uma atitude importante para que ambos possam cuidar para que o medo não impeça o relacionamento, entendendo também que relações acabam e que términos sinceros e cuidadosos não são sinônimo de abandono.

Como diz a autora bell hooks, "o amor cura, nossa recuperação está no ato e na arte de amar". E o amor não é ausência total de medo, mas com e apesar do medo, nos abrirmos para o que de inédito a experiência do amor pode produzir em nossas vidas.