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Cristiane Segatto

Avô cuida das netas enquanto a filha faz o hospital de campanha funcionar

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do VivaBem

26/08/2020 04h00

Não faltará assunto para quem decidir investigar os inúmeros aprendizados da pandemia. Eles são muitos e de toda ordem. Foi preciso reorganizar a vida pessoal, se adaptar a um novo jeito de trabalhar, repensar o funcionamento das organizações e o papel do Estado.

Na família da gerente de enfermagem Fernanda Dei Svaldi Pamplona, 38 anos, tudo isso aconteceu ao mesmo tempo e na velocidade em que o novo coronavírus se espalhava pelo mundo.

Enfermeira hospital de campanha Ibirapuera - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Em abril, ela recebeu a missão de participar de todo o planejamento e montagem do Hospital Estadual de Campanha do Ibirapuera, em São Paulo. Um difícil desafio em um momento de grande demanda e pressão social por resultados.

Fernanda decidiu encará-lo, mas, para isso, era preciso superar o obstáculo enfrentado por muitas mulheres: como ela poderia ter cabeça para trabalhar, ajustando as arestas do hospital em jornadas de até 12 horas por dia, se não havia escola para deixar as filhas Carolina e Beatriz, de 5 e 7 anos?

"Carlos, meu marido, foi pai e mãe. Evitou que eu me sentisse culpada, mas ele trabalha em um esquema de home office alternado (uma semana em casa e outra no escritório)", diz Fernanda. Era preciso encontrar uma alternativa.

Com uma mala na mão, muito amor e algum fôlego

A solução veio do Paraná, com uma mala na mão, muito amor e algum fôlego para aguentar o pique das netinhas. Aos 61 anos, o representante comercial Luiz Henrique Dei Svaldi se ofereceu para cuidar das meninas enquanto fosse necessário.

Como a pandemia derrubou as vendas de tintas em Cascavel, onde mora, Luiz Henrique achou que a melhor forma de se sentir útil seria ajudar Fernanda. "Assim tiro um pouco o peso das costas da minha filha para que ela possa exercer a profissão. O que ela está fazendo não é fácil", diz.

Muito mais que uma tenda

A gestão do Hospital de Campanha do Ibirapuera é feita pelo Seconci-SP (Serviço Social da Construção), organização que presta serviço ao governo estadual. O resultado de um hospital é sempre uma obra coletiva, mas Fernanda desempenha um papel central para que ele funcione como o planejado.

Antes do início das atividades, ela ajudou a levantar as necessidades de infraestrutura e insumos, a organizar os fluxos de atendimento, de materiais e de resíduos, a cumprir a legislação a respeito da metragem das instalações, a montar, treinar e liderar equipes.

Desde o primeiro dia, era preciso reforçar as metas internacionais para garantir um ambiente seguro para os doentes que ocupariam os 268 leitos e para os cerca de 800 profissionais.

"Há pacientes que chegam com medo, achando que ficarão em uma tenda sem recursos", diz Fernanda. "Isso aqui é um hospital de verdade. Segue todas as recomendações de legislação, com espaçamento entre os leitos, pias nos corredores, álcool gel em todos os leitos, posto de enfermagem. Temos até um tomógrafo".

Desafios diários no hospital

Em três meses de funcionamento, o Hospital de Campanha do Ibirapuera recebeu 2.711 pacientes. Segundo o Seconci-SP, apenas 15 morreram no local. Na semana passada, a equipe comemorou 2.000 altas. Mais de uma centena de doentes continua internada; alguns foram transferidos para outras instituições. Não se sabe quando o serviço será desativado.

"No hospital, um dos maiores desafios diários foi juntar profissionais que vieram de lugares e realidades diferentes e transformá-los em uma equipe. Fazer com que todos se sintam no mesmo barco, remando para o mesmo lado e segundo as mesmas práticas", diz Fernanda. "É difícil transmitir segurança aos colaboradores em um momento em que não há segurança para nada e tudo muda rapidamente", afirma.

"Aprender a lidar com as mais diversas pessoas, sabendo que cada uma tem a sua realidade, a sua angústia e o seu tempo. Por mais que eu já tivesse experiência em gestão, acho que trabalhar no hospital de campanha me ensinou a me colocar mais no lugar do outro. Aqui todo mundo começa a repensar suas prioridades", diz ela.

Descobertas diárias em casa

"A família é o nosso porto seguro. Fiquei com muito medo de transmitir o vírus ao meu pai, mas se ele não tivesse se oferecido para cuidar das minhas filhas, eu não poderia estar 100% dedicada ao hospital", diz Fernanda.

Recentemente, ela recebeu uma mensagem da professora da filha mais nova sobre o comportamento de Luiz Henrique nas aulas online: "Seu pai é sensacional, muito participativo !!!!!!".

Antes de se mudar para São Paulo, ele não sabia lidar com computador. "Só sei mexer no celular, mas tive que aprender alguma coisa com a minha neta mais velha para poder ajudá-las a seguir as aulas da escola", diz ele.

"Mostro o material de apoio para a professora, tento participar de algum jeito para minha neta de 5 anos não se sentir perdida", afirma. "Com isso, fui aprendendo também. Tivemos que nos adaptar a tanta novidade".

Enquanto Fernanda zela pelos doentes, o avô e as meninas estudam, cozinham, brincam no parque do condomínio. E, claro, às vezes elas precisam levar umas broncas. "Tem hora que o fôlego falta. As netinhas não são fáceis, não", diz ele, sorrindo.

Luiz Henrique fica feliz ao sentir que elas gostam de sua presença. "Antes da pandemia, nós nos víamos só uma vez por ano. Estou achando maravilhosa a oportunidade de conviver com as meninas. Recebo muito amor das minhas duas princesas, da minha filha e do meu genro. Fico até emocionado", diz. Enquanto as escolas não voltarem a funcionar, o avô vai ficando.

Quanto vale essa convivência e todos os aprendizados familiares e coletivos dos últimos meses? Não existe lado bom na pandemia, mas olhar para ela com olhos de aprendiz parece ser a maneira mais interessante de reorganizar os blocos da vida.

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