Topo

Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que desaposentar? A condição de quem volta para o jogo do 'trabalho'

iStock
Imagem: iStock

Colunista do UOL

28/03/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Recentemente, um famoso jogador de futebol americano, Tom Brady, 44, anunciou seu retorno às atividades que, profissionalmente, fez por mais de 20 anos. Depois de dois meses aposentado, e após o recebimento de todas as homenagens e agradecimentos de profissionais e torcida, que valorizaram suas vitórias e títulos conquistados junto às equipes em que atuou, Tom confessou que ainda não era a hora de ir para as arquibancadas e ficar assistindo outros jogadores realizarem um ofício que tanto lhe agrada.

Segundo o especialista Justin Bariso, a atitude do jogador, que também é casado com a brasileira Gisele Bündchen, foi uma demonstração de inteligência emocional.

Já escrevi em outra coluna que o avanço da medicina, dos treinamentos, da psicologia e da nutrição foram capazes de prolongar a vida de muitos atletas que desafiam, ano após ano, a hora de parar, de se aposentar.

Muitos voltam a competir e retomam a alegria da rotina de treinos e dos encontros com atletas de seu time e membros da sua equipe.

E também não dá para deixar de lado o retorno financeiro que, por meio das redes sociais e das avançadas técnicas de marketing, geram bons rendimentos para quem "voltou a trabalhar" já mais velho, acumulando agora experiência, carisma e uma trajetória profissional com títulos e reconhecimento do bom papel que fez naquela modalidade.

Um grande amigo meu, que tomarei o cuidado de não revelar seu nome, também decidiu que, mesmo alcançado o direito de se aposentar como professor universitário, não era a hora de parar com sua atividade docente, que é semanal e de muita dedicação e comprometimento em transformar a vida de muita gente.

Para ele, o dinheiro talvez não seja mais o motivo que o faz acordar cedo e dormir tarde, já que aulas noturnas nos mantêm ligados até duas ou três horas depois do seu término.

Talvez seu comprometimento e alegria venham do relacionamento que possui com jovens e adultos que sonham em ter uma profissional que traga alegria, um valioso retorno financeiro e uma vida mais digna e de menos sofrimento se comparada à condição de vida dos seus pais. Esse propósito, de ajudar a comunidade a ser melhor, possa ser uma das razões para que ele não continue aposentado.

No entanto, há outras pessoas que precisam desaposentar porque a grana projetada para esta parte da vida, que envolve a velhice, não vai dar. Pode ser aos 40 e tantos anos, para quem começou a trabalhar antes dos quinze, ainda que caiam muitos julgamentos porque essa pessoa hoje é muito nova para já querer se aposentar.

Também pode ser aos 50 ou aos 60 anos, quando o sonho de viver uma fase de aposentadoria gozando as boas condições que anos de trabalho pudessem lhe proporcionar tornou-se um pesadelo, repleto de boletos e cobranças decorrentes dos diversos empréstimos que fez para honrar os compromissos financeiros ligados à aquisição de um móvel para sua casa ou pagamento das contas de água e luz.

Dessa forma, questiono aqui se desaposentar, pelo prazer de continuar a fazer o que se gosta, não poderia ser um privilégio para uma parcela da sociedade? A outra, bem maior e marcada por desigualdades, será que ainda luta (e esse termo não seria exagerado) para envelhecer e, no mínimo, se aposentar?

Essa parte da população que ainda sonha em se aposentar, procura somar pontos ora considerando o tempo de vida, ora o tempo de trabalho. Vai vasculhando todas as contribuições que fez ao longo da sua trajetória profissional, ao mesmo tempo que descobre que muitos dos seus empregadores a enganaram por muitos anos, não depositando a contribuição que, diversas vezes, era até "debitada" do seu salário.

A injustiça não para por aí e fica pior quando a pessoa que quer se aposentar é uma mulher e teve muito da sua atividade laboral não registrada na sua carteira de trabalho. Algumas com seus 60 ou 70 anos sonham com a boa notícia de que os pré-requisitos para a aposentadoria foram alcançados. Agora, bastaria superar a dificuldade de entrar no sistema e clicar, seja sozinha ou com a ajuda de outra pessoa, todos os botões corretos para não ter sua solicitação negada e a sua frustação alimentada por mais um tempo.

Pessoas trabalhadoras, aquelas consideradas celetistas, ou seja, que fizeram sua contribuição para o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), mesmo sendo as contribuições mínimas, enfrentando as barreiras impostas pelas desigualdades e que ainda pagam a parcela ou o aluguel da moradia onde residem, será que essas pessoas mais velhas têm o privilégio de desaposentar pelo prazer de voltar a fazer o que sempre fizeram? Haveria um risco da qualidade de vida ficar mais comprometida, se comparado ao tempo em que estava aposentada, já sem a rotina desgastante de trabalho?

Desaposentar é enfrentar as várias manifestações do etarismo, ou seja, a discriminação que ocorre por ser uma pessoa muito velha ou muito nova. Para muitas e muitos trabalhadores, principalmente aqueles cuja atividade ocupacional demanda mais de competências e capacidades intelectuais e não físicas, a desaposentação é um pouco mais viável.

Mas, ainda assim, haverá o julgamento, para além dos olhares, de que essa pessoa já poderá ser velha demais para estar ali, no meio de pessoas muito mais jovens que ela. No caso do jogador, a diferença sua para um outro da mesma função poderá ser maior que 20 anos.

Algumas situações para deixar de ser aposentada envolverão pintar os cabelos, trocar as roupas que estão no guarda-roupa, assumir posturas e repensar valores pela necessidade de voltar a trabalhar e não por desejo próprio. Uma mudança forçada pelo etarismo e que pode carregar desapontamento, angústia e um pouco de frustração.

E o que podemos pensar de duas mulheres, uma jovem e uma velha, que trabalham na execução de faxinas diárias? Será que aquela medicina avançada, aqueles cuidados nutricionais e psicológicos baseados nas mais recentes descobertas da ciência e aquela tecnologia do treinamento também estarão à disposição delas, assim como estão para muitos atletas ou profissionais cujas atividades exigem nível superior e domínio de dois ou três idiomas?

O que quero reforçar é que muitas pessoas precisam usufruir a vida para muito além do trajeto e do ambiente de trabalho que o acolheu por décadas e da melhor forma possível, ainda que sentindo muito frio, muitas dores ao final do dia, a pele queimando sob o sol ou ouvindo a reclamação constante da chefia!

Muitas velhas e velhos aprenderam a trabalhar desde muito cedo e não receberam as "lições de casa" ou os aprendizados da vida para serem felizes fora desse ambiente. Quando param de trabalhar, com ou sem aposentadoria, poderá ser tarde demais, considerando os anos que ainda tem para viver, seja junto a seus familiares, dedicando maiores cuidados com sua saúde e, principalmente, fazendo aquilo que realmente sempre teve vontade de fazer.

E mais: que mulheres já idosas sejam valorizadas pelo enorme e exaustivo trabalho doméstico, muitas vezes invisibilizado, mas que garante que companheiro, filho e neto possam trabalhar e acumular anos em suas respectivas carteiras de trabalho!

Desaposentar ainda não é algo democrático. Aposentar, para uma grande parcela da população, ainda é enfrentar burocracias, barreiras construídas pelas desigualdades sociais, descontentamentos com a trajetória profissional e um risco iminente de estar adoecido pelo trabalho que executou e, se acometido, que saiba lidar com as sequelas.

Tudo isso é o que mais se vê nesse caminho onde muitas pessoas envelhecem ainda com medo de morrer dos problemas que a pobreza traz. Como se não bastasse, muitas dessas pessoas ainda se preocupam e têm medo dos boletos que poderão deixar como herança.