Lei Áurea para quem?

Os 132 anos do fim da escravidão colocam em debate políticas públicas raciais no Brasil: elas são suficientes?

Nathália Geraldo e Luiza Souto De Universa Peter Bauza/GettyImages

"O tempero do mar foi lágrima de preto/Papo reto como esqueletos de outro dialeto/Só desafeto, vida de inseto, imundo/Indenização? Fama de vagabundo."

Cento e trinta e dois anos após a assinatura da Lei Áurea, os versos da música "Boa Esperança", do rapper Emicida, recontam a história da escravização de africanos — que durou quase quatro séculos e aportou no Brasil um terço da movimentação total do tráfico negreiro da época — conectada à realidade atual da população negra brasileira.

Promulgada pela princesa imperial regente Isabel em 1888, a Lei Áurea — termo que significa "de ouro" — segundo especialistas, poderia ter brilhado mais. Universa conversou com três professoras, negras, que avaliam as duas linhas do documento como insuficientes, por terem deixado os negros libertos "ao léu" e "sem plena cidadania". Por isso, movimentos negros valorizam mais 20 de novembro, como uma data de luta e resistência, por rememorar a morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do Brasil.

Nem mesmo outro marco histórico na sociedade brasileira, a Constituição de 1988, que criminalizou o racismo, assegurou o direito de posse de terra às comunidades quilombolas e deu origem à Fundação Cultural Palmares, trouxe a reparação necessária para os herdeiros de quem enfrentou os grilhões do sistema escravista. Ainda hoje, comenta a historiadora e escritora Larissa Moreira, a população negra amarga com a ausência ou a incompletude de políticas públicas que promovam o bem-estar social.

Universa apurou o investimento em políticas de combate ao racismo e de igualdade racial nos últimos anos e constatou que houve recuo de verbas aplicadas em ações que contemplassem os direitos da população negra. Programas específicos, conquistas da pressão de movimentos negros junto ao governo federal, também foram incorporados em outras ações mais gerais, "de direitos humanos".

"Patinamos nas políticas públicas de igualdade racial porque não há interesse de um Estado, construído e mantido pela mão de obra negra, em alterar esse quadro. Não dá para se manter sobre as mesmas estruturas e esperar que elas se transformem. Políticas públicas e reparatórias encontrarão sempre, na contramão, um movimento conservador para lhes barrar", explica Larissa.

A contaminação por Covid-19, pontuam as entrevistadas, em que o risco de morte de negros é 62% maior do que de brancos na cidade de São Paulo, por exemplo, reforça a manutenção das estruturas excludentes. "Os negros, mais uma vez, são mais atingidos. As mazelas causadas pela ausência de políticas públicas, de saneamento, de saúde básica, vieram à tona", avalia a pesquisadora e doutoranda em psicologia social pela PUC-SP, e professora no curso de pós-graduação Cultura, Educação e Relações Étnico-Raciais, da USP, Eliete Edwiges Barbosa.

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Comemorar o quê?

O 13 de Maio de 1888 não mexeu com as estruturas de poder, nem tocou nos privilégios da elite. Donos de fazendas, de engenhos, permaneceram com o capital político e financeiro do Brasil, enquanto a população negra se questionava sobre seu novo papel como pessoas libertas.

Se de um lado a canetada da princesa Isabel passou a valer muito para a narrativa contada nos livros de história, ela também tirou os holofotes de outros processos abolicionistas da época, inclusive protagonizados por negros. "Criou-se uma imagem romantizada da princesa Isabel, ao mesmo tempo que tentaram apagar os registros do sistema escravista sob a égide da modernidade republicana", afirma a historiadora.

"Isso soterrou revoltas, associações, aquilombamentos e toda luta abolicionista protagonizada por negros. A lei, então, passa a ser vista como um presente entregue a nós."

Para a professora associada de sociologia da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro Luciane Soares da Silva, a Lei Áurea foi uma lei "feita por cima, muito semelhante a outras leis do Brasil, que não são efetivadas na cultura". De lá para cá, o Estado não só se preocupou em ofuscar ainda mais os embates sociais despertados pelas tensões raciais que temos desde a escravidão entre negros e não-negros, como também atuou para diluir a necessidade de igualar a todos, racialmente falando.

"No século 20, há a política de incentivo à imigração europeia; depois, a proibição de entrada de negros e asiáticos [há registro de que, em 1921, os deputados Andrade Bezerra e Cincinato Braga apresentaram ao Congresso Nacional um projeto de lei para 'proibir a imigração de indivíduos humanos da raça de cor preta'], e uma política eugenista do Estado Novo", pontua a socióloga. "Na verdade, o Estado brasileiro sempre quis diluir o problema racial que se colocava. Então não é que houve/há ausência do Estado: ele agiu exatamente nesses momentos."

A sequência de decisões, aponta Larissa, evidencia a violência racial no país. "As teorias raciais, a eugenia, a falseada ideia da democracia racial são outros mecanismos violentos de nossa história", diz Darcy. Resultado: desigualdade racial — denunciada repetidamente pelos movimentos negros e coletivos periféricos, que cobram os direitos da população negra há anos.

O 13 de Maio é uma data para reflexão sobre relações sociais travadas ainda hoje e sobre disputa, simbólica, de narrativas. É preciso ressignificá-la.

Larissa Moreira, historiadora e escritora

Na política, faltam ações de reparo

Segundo as especialistas, houve avanços nos mecanismos de reparação social. As cotas raciais, que fizeram parte das políticas públicas de ações afirmativas de 2012, foram um deles. Só que as medidas foram "separadas em gavetinhas", explica a pesquisadora Eliete Edwiges.

"Imagine que o país é um guarda-roupa formado por gavetas que representam, cada uma, uma área da vida dos brasileiros", diz. É cilada, segundo ela, pensar que as políticas públicas serão, de fato, iniciativas de igualdade racial se o governo olhar só para os investimentos na "gaveta da Educação", por exemplo, sem fincar pregos de medidas de ações afirmativas. Assim vale para todas as questões estratégicas de garantia de direitos dos cidadãos.

"A reparação inclui a de renda; de terra [a questão dos quilombolas]; de educação, com ações afirmativas; de trabalho, com a qualificação da mão de obra de não-brancos e equiparação de salários. É isso que importa. E não avançamos da forma esperada nessas áreas", analisa Luciane.

No recorte de gênero, você tem a mulher negra como a que ganha menos na pirâmide social, ao mesmo tempo em que temos o maior número de famílias brasileiras chefiadas por elas. A maior desigualdade racial do Brasil está aí. Como você consegue reparar a condição de mulheres das periferias, da Rocinha, de Paraisópolis, da Restinga, de bairros de Manaus, que têm três filhos e que estão sem renda?

Luciane Soares da Silva, socióloga

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Marcos recentes da igualdade racial

Entre os principais dispositivos do governo federal para tratar a igualdade de oportunidades à população negra estão o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial, de 2009, que instituía um comitê articulado entre alguns dos ministérios para ações na questão racial, e o Estatuto da Igualdade Racial, de 2010. Pelo Estatuto, também foi criado o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que integra entes estaduais, distrital e municipais por meio de órgãos e conselhos regionais.

A Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Seppir, foi criada no governo Lula (PT) em 2003, representando importante conquista para a inserção das agendas de movimentos negros no âmbito federal. Apesar disso, mais uma vez, o governo olhava "só uma gaveta", como explica Luciane.

"Não bastava saber o que fazer, mas era necessário se movimentar beirando a um quadro revolucionário, para abarcar as questões de renda, saúde, violência, moradia", diz. "O problema, na verdade, não poderia ser enfrentado por uma única pasta — precisaria ser de modo transversal. Talvez teríamos mais efetividade se cada ministério, principalmente o da Justiça, tivesse atenção especial ao tema racial. Uma única secretaria acaba tendo atuação limitada."

Hoje, no governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a secretaria é submetida ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de Damares Alves, tendo a jornalista e cineasta de origem indígena Sandra Terena como representante.

Na tentativa de traçar um panorama de como as políticas públicas raciais e de combate ao racismo foram abordadas pelo governo federal, Universa apurou que os programas e ações direcionados a essas questões passaram por cortes e modificações nos últimos mandatos. Hoje, o país sequer tem um programa específico para esse segmento.

Queda de valores empenhados, mudanças de nomes

Em resumo, até 2019, o governo possuía um programa chamado "Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo", do Ministério dos Direitos Humanos, com ações que visavam, por exemplo, reduzir mortes evitáveis e violentas entre mulheres e jovens negros.

Para tentar comparar os últimos governos, Universa pegou o orçamento deste programa em anos anteriores. Em 2015, quando Dilma Rousseff (PT) ainda estava no poder, foram R$ 29,4 milhões empenhados — que é a obrigação de pagamento para atender a um fim específico — e somente R$ 7,6 milhões pagos, quando a ação é concluída. Os dados estão disponíveis no Siop (Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo).

Já no último ano de Michel Temer (MDB), em 2018, o governo empenhou um pouco mais para este programa: R$ 31,7 milhões, e pagou R$ 20,5 milhões. Importante ressaltar que o valor empenhado num ano pode ser pago em outro período. São os chamados restos a pagar.

Em 2019, ano em que Jair Bolsonaro assumiu, houve queda de 60% do valor empenhado para o programa, em comparação com o período anterior: foram R$ 12,5 milhões. O valor pago chegou a R$ 5,9 milhões.

Naquele ano, o programa já havia perdido uma ação: o Disque Igualdade Racial, incorporado por todos os sistemas, portais e canais de atendimento de Direitos Humanos disponíveis ao cidadão, como Disque 100 (Disque Direitos Humanos).

Em 2020, saiu de cena o programa "Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo" que, acoplado a outras ações, recebeu o nome "Proteção à vida, fortalecimento da família, promoção e defesa dos direitos humanos para todos". Segundo o Ministério da Economia, a mudança serviu para "maior simplificação, com uma estrutura concisa e consistente com as diretrizes e prioridades do governo".

Conforme Luciane pontuou, a questão racial, historicamente, é "diluída" no âmbito governamental. Não é mais possível saber, por exemplo, quanto o governo gasta — ou pretende gastar — para projetos voltados à população negra.

Outro exemplo dessa diluição: a ação que existia nos planos anteriores nominada "Fomento a Ações Afirmativas e Outras Iniciativas para o Enfrentamento ao Racismo e a Promoção da Igualdade Racial" agora se chama "Promoção e Defesa de Direitos para Todos". Nela, o governo planeja promoção de boas práticas de prevenção e enfrentamento às violações de direitos como capacitação de agentes públicos e privados que atuam com políticas de direitos.

Para tentar chegar a um valor associado ao ano corrente, Universa separou apenas as ações específicas voltadas aos direitos humanos — excluindo aquelas relacionadas a mulheres e combate ao coronavírus. Sob esse contexto, segundo dados disponíveis no Siop, o programa teve R$ 34,9 milhões empenhados até agora.

Mas, deste montante, foram reservados R$ 20,5 milhões apenas à Central de Atendimento de Direitos Humanos e à Mulher - Disque 100/Ligue 180, enquanto o Funcionamento do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial e do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais teve R$ 219,8 mil empenhados.

Enquanto isso, coletivos periféricos e movimentos negros continuam como vozes que pedem atenção às questões raciais e ao fato de como o ranço escravocrata — perpetuado nas estruturas de poder, diz Larissa — ainda reverbera na sociedade brasileira.

"Mas é tudo difícil de negociar. Temos um representante que está em Brasília que diz que a escravidão foi boa para os negros [o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, já deu essa declaração]. Então, fica difícil de colocar essas reivindicações na agenda. Mas colocar o recorte racial nas mortes do Covid, por exemplo, foi uma pauta deles", diz a socióloga.

Pedimos ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos a previsão de orçamento com ações específicas para a população negra em 2020. Também questionamos sobre a necessidade da pasta para a revisão do programa. Por último, pedimos para conversar com um representante do governo sobre o tema. Mas, por e-mail, a assessoria de imprensa respondeu apenas que "alguns programas tiveram seus nomes alterados".

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