Sou Maria Marighella

Neta do "inimigo nº 1 da ditadura", ela fala de liberdade, do filme sobre o avô e anuncia entrada na política

Nathália Geraldo De Universa Divulgação

Maria Marighella, 44, de Salvador, não conheceu o avô. Ele foi morto em 1969, ela nasceu em 1976. Apesar disso, foi construindo desde pequena suas pontes com a história de Carlos Marighella —um dos principais líderes da luta armada contra a ditadura militar. O sobrenome da família volta agora à cena, impulsionado pelo filme sobre o militante comunista que chegou a ser tratado como inimigo número um da repressão.

"Marighella", filme dirigido pelo ator Wagner Moura em sua primeira empreitada atrás das câmeras, estreia nos cinemas em 14 de maio. Maria, que é atriz, faz uma participação no longa interpretando sua avó Elza Sento Sé, mãe de seu pai, Carlos Augusto. "Foi lindo contracenar com o menino que faz Carlinhos, que é meu pai."

Maria, que durante a adolescência participou da Juventude Comunista, anuncia para Universa que vai agora se filiar primeira vez a um partido político. A legenda escolhida é o PT, justamente num momento em que o partido atravessa sua maior crise. Ela justifica dizendo que a escolha é também emocional: sua "avó do coração" Clara Charf [em foto nesta reportagem], viúva do guerrilheiro, é uma das fundadoras da legenda. Pelo PT, Maria quer disputar uma vaga para a Câmara de Vereadores de Salvador por meio de uma candidatura coletiva.

"Eu realmente acredito no partido, em sua história e na decência de sua composição", diz ela. "E PT foi o partido responsável pelas políticas públicas que mudaram a feição da cultura no Brasil, e desse processo eu participei ativamente, mesmo sem ser do partido."

Filha de ex-deputado, Maria tem dois irmãos, Ana Rita Marighella e Pedro Marighella, e é mãe de Zeca e Bento, de 13 e 9 anos. Ela se formou em artes cênicas, com foco em interpretação teatral pela Universidade Federal da Bahia, mas hoje trabalha como assessora especial da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. Ela trabalha com gestão pública desde 2012, tendo assumido papéis como a coordenação de teatros no estado e participado do Conselho da Política Nacional das Artes.

O filme "Marighella", avalia, servirá para disseminar a figura de seu avô — já que, para ela, há um "desconhecimento programado" configurado de "forma ardil pelo próprio poder instalado" para que a luta encampada pelo guerrilheiro seja subestimada. "A luta de Marighella é constantemente afastada da vida do brasileiro. Mas digo que o Brasil precisa muito mais de Marighella do que o contrário."

Que não se goste de Marighella, ela aceita, mas pede que se entenda que papel que ele exerceu é indissociável da história política recente do país.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Divulgação

"O problema do Brasil não é Bolsonaro"

Você não conheceu seu avô. Como a figura dele atravessa sua vida?

Eu tinha 13 anos, em 1989, e meu pai me pediu para representá-lo em atividades em homenagem ao meu avô. Fui ao teatro da PUC, o Tuca, em São Paulo, que estava com uma greve de estudantes, mediada pelo [vereador de São Paulo Eduardo] Suplicy. Aquele ano, pouco antes das eleições diretas para presidente, estava uma loucura. Para ir para lá, tive que faltar às aulas. Um amiguinho me perguntou: mas quem é seu avô para receber uma homenagem, um empresário? E eu respondi que um dia o Brasil iria deixar de homenagear empresários e que todo o povo que Marighella sempre amou iria conhecê-lo.

Mas essa análise vem aos poucos. Eu nasci já como uma criança vítima da ditadura, porque meu pai estava preso. Quando meu avô é morto, meu pai é detido por ser filho de Marighella — minha mãe estava grávida de cinco meses — em uma operação do [coronel e ex-chefe do DOI-CODI] Brilhante Ustra. Meu pai era operário do Polo Petroquímico da Bahia, sindicalista, e foi preso por ser um militante ligado ao Partido Comunista. Era 1975. Só fui viver com ele quando eu já tinha dois anos.

Vivi a anistia, em 1979, de forma muito forte, porque foi quando minha avó, Clara [Charf], que foi exilada em Cuba depois da morte de meu avô, voltou. Foi um momento muito marcante.

Houve dificuldade para lançar Marighella no Brasil. Como isso te afetou?

Estive muito presente no início do projeto. Wagner [Moura] é um grande amigo, somos contemporâneos do teatro na Bahia. É uma alegria imensa que ele, especificamente, tenha topado fazer esse filme. E isso foi no verão de 2012 para 2013. Mário Magalhães tinha acabado de lançar a biografia e eu a dei para Wagner naquele ano, de presente. A gente o imaginava como produtor, mas logo depois ele se imaginou como diretor. Ele teve uma coragem política e artística de encarar isso.

O Brasil vem tendo guinadas e transformações políticas desde 2013. E desde aquela época, a tentativa de Wagner de fazer o filme já foi difícil. É importante que a gente revele que os desafios para o "Marighella" foram se complexando na medida em que o Brasil ia tomando alguns contornos políticos. A polarização ninada em 2013 fez nascer um tipo de reação ao filme que Wagner encontrou desde o início, porque já havia muita dificuldade de captar [recursos]. Mesmo sendo Wagner, um ator de sucesso, mesmo com a O2 Filmes, a produtora, por trás. Mas isso para mim sempre foi muito normal, porque se trata de Marighella. Ele era um homem, um ativista, um político, que lutou por liberdade, soberania, igualdade, justiça, e esses temas não estão superados no país.

Ser neta de Marighella é estar sempre sob essa tensão: de amor, de ver como ele é admirado, e, ao mesmo tempo, esse temor que ele causa no capital, no mercado, nas corporações

Wagner Moura já disse que o filme é mais que uma resposta ao governo Bolsonaro. Que tamanho você acha que Marighella, o homem, tem hoje e qual terá depois do filme?

Eu acho que o personagem Marighella é muito maior do que Bolsonaro, que era um deputado pouco relevante. Na verdade, eu falo muito pouco dele porque realmente acho que o nosso problema hoje é muito maior. Há uma questão política em curso no mundo e no Brasil em que se dão os interesses do capital, com um assédio sofrido pelo Brasil e outros países da América Latina. Então, honestamente, acho que Bolsonaro é um joguete dessa história. Eu perco muito pouco tempo falando dele.

O problema do Brasil é outro. São suas estruturas de justiça, são os mandatários do poder, quem detém o poder, quem detém o capital, quem controla as comunicações e que não tem a coragem de fazer a justiça que o Brasil merece, nem de atravessar historicamente as suas desigualdades para corrigi-las. Marighella não, Marighella é imenso.

Tiago Lima Tiago Lima

"Fui contra enegrecer Marighella no filme"

Muita gente associa as mortes de Marielle e Marighella. Como você vê?

Sim, quando Marielle foi executada não teve como não lembrar de Marighella. Não existe hierarquia para a morte nem para dor, todas as vidas importam. Mas quando uma parlamentar é morta em pleno exercício do seu mandato, e quase dois anos depois não se sabe quem mandou matar e por que, significa que o Estado brasileiro é responsável. Não dá para dizer que não há uma intencionalidade nesse mistério. A Justiça, o presidente e os cargos públicos são responsáveis por esse silêncio.

Então, quando a gente não fala de Marighella, se cristaliza no imaginário na sociedade de que os dois estão isolados — claro que a gente não está falando de relação direta, né? São figuras históricas distintas. Mas, para os dois, falo da responsabilidade do Estado brasileiro. Responsável ou, no mínimo, conivente.

Há muitas pautas progressistas hoje, como combate à desigualdade racial, social, machismo e sexismo, combate ao ideário neonazista, discursos de opressão. Dentro da sua atuação política, qual ponto te toca mais?

O Brasil tem injustiças históricas muito profundas, entranhadas, feridas expostas. Nós não conseguiremos ter um país de futuro justo e igual sem que a gente ultrapasse com a coragem necessária a admissão do racismo. As lutas são chamadas de identitárias, mas eu não as reconheço assim. Eu acho que elas estão na centralidade de um processo de Justiça, ou seja, se nós imaginamos que o Brasil precisa ultrapassar essa linha da dor, a escravidão, do processo de colonização, nós precisamos ter uma escuta radical e parar tudo para corrigir.

A questão racial é central. Nós estamos vivendo agora na Bahia um supermovimento político — chamado "Eu quero ela" — é o movimento negro dizendo que quer a prefeitura. Isso na cidade mais negra fora da África. É simples e, ao mesmo tempo, complicado. Na verdade, a gente precisa acelerar esse processo.

Como?

Eu acho que a gente precisa disputar um projeto político para o Brasil. Ora vai ser direita, ora vai ser esquerda. É normal, do jogo. Mas o que a gente está vivendo agora não é a disputa de um programa político. Nós estamos abrindo mão de pactos mínimos civilizatórios, de justiça, de direito e isso é muito perigoso. É devastador.

O que você achou de Marighella ser interpretado por Seu Jorge, um homem com a pele mais escura do que a de seu avô?

A família não teve nenhuma relação com o filme, não olhamos roteiro, meu pai e minha mãe, que são detentores dos direitos de imagem, não participaram de nada, só vão ver nos cinemas. Eu, por ter amizade com Wagner, confesso que fui extremamente contra enegrecer Marighella. Tive medo. Quando eu vi o filme, no entanto, eu achei que Wagner acertou muito. É um filme que me atravessa de muitas maneiras. E na hora que eu vi na tela... É a cor da luta de Marighella.

Então, está tudo certo, muito lindo. Wagner arriscou e acertou. E não porque Marighella não seja negro, é porque essa dimensão no Brasil também é tensa. Então, nós também temos nossas questões. Mas, para mim, ele acertou.

Reprodução Reprodução

Guerrilheiro, meu avô

Carlos Marighella, um homem de mil faces, na música dos Racionais MC's, foi morto no dia 4 de novembro de 1969, por agentes do Dops, órgão de repressão da ditadura. Baiano, militante comunista e revolucionário, era considerado o inimigo número um da ditadura militar. "Não é porque ele é meu avô. Ele sempre vai estar na história e eu falo isso com muita naturalidade. Eu acho que quando impedem de Marighella aparecer, quem perde é o Brasil. Não porque [seja necessário] adorá-lo, concordar com ele. É como Lula. Ninguém precisa adorá-lo, mas não pode tirar um personagem desse da história do Brasil", diz ela.

Marighella fundou o grupo armado de combate à ditadura Ação Libertadora Nacional, que participaria, dois meses antes da morte de Marighella, do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick. "Ele foi à luta armada e a propôs em articulação com outros movimentos da América Latina, pensando cada momento da história brasileira. E era admirado não só no meio político. Godard, Sartre, Glauber Rocha o admiravam. Ele tinha posições autorais importantes. Conhecer Marighella é conhecer a história do Brasil", diz a neta.

Marighella participou de todos os momentos emblemáticos da política brasileira: a Era Vargas, atravessou a Guerra Fria, foi um parlamentar brilhante nos anos 40, deputado constituinte cassado.

Seu Jorge e o diretor Wagner Moura em "Marighella"

Divulgação Divulgação

"Somos órfãos do Ministério da Cultura"

Qual é sua opinião sobre as medidas do governo federal no campo da cultura?

Quando você perde o próprio ministério, vão junto orçamento, conselhos, participação, todos os elementos que garantem a força. Nos tornamos realmente órfãos daquela instituição. É claro que todos os estados perdem, independentemente de estarem alinhados ou não politicamente. A ausência do Ministério da Cultura abate todas as secretarias, abate todo o campo da cultura, em âmbitos estadual e municipal.

A gente perde execução de programas, como os Pontos de Cultura, o Cultura Viva. Quando se tem um cenário para as artes audiovisuais tão deficitário, você fica sem fôlego nos estados e municípios. Claro que aqueles que têm mais recurso mantêm uma resistência. Mas nós não podemos falar, em hipótese alguma, que está tudo bem, que os estados e cidades caminham bem com essa ausência absoluta do Ministério da Cultura.

Como responder a isso estando dentro da administração pública?

O nosso papel é minimizar os impactos, inventando, inclusive, novos arranjos. O próprio Consórcio Nordeste é um exemplo disso. São novas parcerias que não são uma resposta necessariamente ao que está acontecendo, mas que se tornam importantes porque você precisa manter estados e municípios atuando com arranjos que tenham como perspectiva ultrapassar a crise, vencer esse momento.

Regina Duarte assumirá a Secretaria Especial da Cultura. Que mensagem você mandaria para ela?

Ela é uma atriz. Ela, em teoria, tem história para assumir um cargo público. Eu acho que a questão não é o nome de Regina, porque, hoje, qualquer nome que aceita participar desse governo é questionado pelo campo da cultura. A questão não é o nome de Regina. Não tem mensagem para ela. A questão é que a gente tem que mandar um recado à sociedade: não haverá nome que seja capaz de compor esse governo, que é inimigo da cultura. A questão é essa. Um governo que usa do aparato de governo para depreciar uma obra como aconteceu com "Democracia em Vertigem", de uma cineasta importante. É inadmissível. O que a gente precisa se perguntar é: que tipo de personalidade, gestor, artista, topa encarar uma tarefa como essa? E com que fundamentos?

Mas, de maneira nenhuma, esse é o nosso maior problema. Nós não temos orçamento para o tamanho da cultura brasileira. As políticas não estão em vigor. Os prêmios não estão em vigor. Nós não temos um fomento descentralizado. O presidente falou que haveria a avaliação das obras. Há censura explícita, escancarada, demonização de algumas obras com algumas temáticas, suspensão de editais, casas culturais ligadas às estatais (como a Caixa) interditando obras, artistas, com sinais claros de censura. O próprio filme "Marighella" não teve o apoio necessário por parte da Ancine para o seu lançamento.

Divulgação Divulgação

Leia também:

Caio Cezar/UOL

Família em transição

Como pai e filha assumiram juntos a identidade de gênero

Ler mais
Bruno Miranda/UOL

A culpa não é do boto

Como uma lenda indígena foi associada a casos de estupro no Pará

Ler mais
Editora Boitempo

Muito mais que feminista

Ícone pop, anticapitalista e abolicionista penal, Angela Davis diz que liberdade é luta constante

Ler mais
Topo