Aborto: só a lei basta?

Brasil não evolui na legislação há uma década, enquanto América Latina avança. Descriminalizar é suficiente?

Débora Miranda, Aline Gatto Boueri, Luciana Taddeo e Caroline Coelho De Universa, em São Paulo; colaboração para Universa, em Buenos Aires e Montevidéu Arte/UOL

Dois dias após descobrir que sua filha, então com 10 anos, estava grávida depois de sofrer um estupro, a mãe da criança a levou ao hospital em busca de um aborto. O hospital se negou a realizar o procedimento, argumentando que, de acordo com suas normas, só poderia fazê-lo até a 20ª semana. A menina já havia passado da 22ª semana. A regra não consta no Código Penal, que permite o aborto em caso de estupro sem impor tempo de gravidez nem autorização judicial.

O caso foi parar na Justiça. A juíza Joana Ribeiro Zimmer induziu a criança a desistir do procedimento, sugerindo que ela mantivesse a gravidez por mais "uma ou duas semanas", para aumentar a chance de sobrevida do feto. Atualmente a menina está com 29 semanas de gestação. "Você suportaria ficar mais um pouquinho?"

O episódio, que dominou o noticiário nesta semana, mostra como as leis que regulamentam o aborto são essenciais, mas não suficientes. Enquanto no Brasil a discussão não avança há uma década, na América Latina o direito a interromper uma gravidez já foi garantido por lei na Argentina, no Uruguai, em Cuba, na Guiana e na Guiana Francesa, na Colômbia e em algumas regiões do México.

"Não podemos diminuir a importância da lei. Ela cria possibilidades e protege o acesso ao aborto seguro, principalmente às mulheres mais vulneráveis", afirma Débora Diniz, coordenadora da Pesquisa Nacional do Aborto. É preciso, no entanto, que ela venha acompanhada de políticas públicas que garantam sua implementação.

Mesmo em países em que a interrupção da gestação é permitida sem restrições como estupro ou risco à vida da mãe, mulheres ainda travam batalhas nos órgãos públicos e precisam enfrentar valores pessoais de profissionais da saúde e juízes na contramão da lei.

Universa ouviu quatro mulheres que passaram pelo procedimento em Buenos Aires, em Bogotá, em Montevidéu e na Cidade do México para entender como a experiência do aborto legalizado se dá em cada um desses países —e como deve ser idealmente, respeitando as orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde), que prega um procedimento seguro, acessível, não-discriminatório e respeitoso.

ARGENTINA :: 'Primeiro as mamães, depois os abortos'

É ano eleitoral no Brasil, e o aborto continua sendo tabu nas rodas de discussão com candidatos. Pois foi trazendo o assunto à tona que o presidente Alberto Fernández se elegeu em primeiro turno na Argentina, em 2019. Desde 2007, organizações feministas articuladas na Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto haviam apresentado oito projetos de lei de iniciativa popular no Congresso. A forte presença de mulheres nas ruas em grandes manifestações também era um indicativo de que a pauta era primordial para as eleitoras.

De olho nisso, Fernández defendeu a legalização do aborto durante a campanha eleitoral e foi justamente do Executivo que partiu o projeto de interrupção voluntária da gravidez em 2020 —aprovado em 30 de dezembro daquele ano, com imenso apoio das mulheres nas ruas.

Mesmo com tamanha mobilização, o primeiro ano de vigência da lei 27.610, que regula o acesso ao aborto no país, foi conturbado. Um relatório da Secretaria de Saúde Sexual e Reprodutiva revela que o órgão precisou enfrentar ações judiciais que tentaram anular a lei.

Mas a resistência ao direito de abortar vai além da legislação. Muitos profissionais da saúde têm se colocado —de formas variadas— contra o procedimento, gerando descaso, maus tratos e desrespeito às mulheres. É o que conta Giuliana Veliz, 27 anos, jornalista e produtora audiovisual, que fez um aborto legal em Buenos Aires (leia aqui o relato completo).

"Procurei um CeSAC [Centro de Saúde e Ação Comunitária, similar às Unidades Básicas de Saúde no Brasil]. Fui muito bem atendida e recebi o medicamento abortivo de forma gratuita. Fui orientada a voltar dois dias depois e descobri que ainda não tinha expulsado tudo. A equipe do CeSAC me enviou com urgência para o hospital, onde fiz uma curetagem uterina", lembra.

Aí vi que a legalidade ainda não havia chegado a todo o sistema de saúde. Esperei por cinco horas no pronto socorro obstétrico. Em um determinado momento, falei que estava assustada. Uma enfermeira respondeu que primeiro atendem as mamães, depois os abortos. Fiquei quieta, com medo. Eu estava sozinha e vulnerável. A curetagem em si foi rápida, mas o que veio depois foi muito ruim. Me senti julgada e castigada.

Giuliana Veliz, jornalista e produtora audiovisual

Existe algo na medicina chamado "objeção de consciência", que prevê que o médico possa se negar a realizar determinado procedimento caso vá contra sua ideologia —desde que a saúde do paciente não seja negligenciada.

"Como em casos de urgência o médico precisa atender a paciente, ainda que ele não concorde com o aborto, acaba destratando a mulher. Por isso também o melhor cenário é que a interrupção da gravidez seja feita em casa", afirma Debora Diniz.

"O aborto é uma prática segura, mas o estigma faz com que a gente ache que precisa do médico, faz com que a gente ache que vai sangrar até morrer. O uso do medicamento significa a desmedicalização do aborto. É importante essa apropriação da mulher de algo que foi usurpado pelo poder público, pela moral e pelo controle reprodutivo."

De acordo com dados da Secretaria de Saúde Sexual e Reprodutiva do Ministério da Saúde da Argentina, 64.164 abortos legais foram realizados em 2021. Segundo Valeria Isla, que comanda o órgão, esse número "coloca em evidência a quantidade de abortos que eram realizados todos os anos de maneira clandestina".

"As mulheres abortam, e a proibição não muda isso. O aborto clandestino faz com que muitas morram ou sofram consequências graves depois de um procedimento inseguro. Temos a obrigação de prevenir isso", afirma Valeria Isla.

URUGUAI :: Aborto em casa

Quando descobriu que estava grávida, a educadora C.Z.*, 23, queria resolver a situação o mais rápido possível. Ela vive em Montevidéu, no Uruguai, onde a lei da Interrupção Voluntária da Gravidez (conhecida como IVE) vai completar 10 anos em outubro.

A legislação é a primeira da América Sul que permite que as gestantes tenham acesso a um aborto seguro e gratuito, por qualquer motivo, até a 12ª semana de gestação. Para os casos de estupro com denúncia judicial, esse prazo se estende até a 14ª semana.

"Quando vi o resultado positivo, eu chorei tanto, tanto, tanto... Nunca tinha pensado em ser mãe. Trabalho com educação social há dois anos, e tudo aconteceu dias antes de começar meu curso. Eu só queria estudar, e a lei me salvou", diz C.Z. (leia aqui a história completa).

Ela conta que, quando decidiu pela interrupção da gravidez, procurou atendimento e recebeu todas as informações da ginecologista: "Ela me falou sobre o que poderia acontecer e as possibilidades de problema durante o processo". No dia da interrupção da gravidez, C.Z. estava em casa, com a mãe.

Passar pela interrupção da gravidez em casa é exatamente o processo indicado pela OMS.

A gente foi doutrinado a acreditar que o aborto é um ato médico. Não é. Ele é um ato doméstico. A orientação da OMS é usar medicamento e realizá-lo em casa [até 12 semanas de gestação]. Sem médico nem hospitalização. Claro que isso não significa que a mulher não vá ter acompanhamento.

Debora Diniz, coordenadora da Pesquisa Nacional do Aborto

Dados divulgados pela OMS afirmam que a prática é segura e raramente há complicações. "Estudos demonstram que medicamentos para aborto podem ser efetivos quando autoadministrados fora de um hospital —ou seja, em casa. Pessoas que têm acesso a informação e a um profissional de saúde treinado podem de forma segura conduzir o próprio processo de aborto nas primeiras 12 semanas de gestação", afirma o guia de boas práticas da organização.

Nesse sentido, a ideia é que os abortos sigam o mesmo caminho de humanização que os partos vêm trilhando. Ou seja, a mulher conta com acompanhamento e acolhimento —que pode envolver companheiro ou companheira, familiar, doula ou algum profissional de saúde, por exemplo— e tem segurança para conduzir o aborto em casa.

Precisa ser responsabilidade do Estado, no entanto, preocupar-se com a reabilitação psíquica e física das mulheres -além de orientá-las com relação a métodos anticoncepcionais.

"Uma mulher que tem uma gravidez não desejada não é uma criminosa, ela é uma cidadã e merece assessoria e atendimento", afirma a ginecologista Verónica Fiol, professora da Udelar (Universidade da República do Uruguai) e uma das integrantes da Organização Iniciativas Sanitárias (ONG referência na defesa do direito à saúde sexual e reprodutiva no Uruguai e na América Latina).

MÉXICO :: 'Não queria passar por isso sozinha'

Se há um consenso entre quem passou por um aborto é que a estrutura oferecida pelo Estado, por mais que seja competente e funcional, não está pronta para acolher as mulheres. Por isso, há países em que ONGs e coletivos femininos tratam dessa questão, cuidando, acompanhando e orientando quem busca um aborto legal.

"Não queria passar por isso sozinha, tinha muito medo. Encontrei, no Facebook, o coletivo Aborto Legal e consegui, por lá, o contato de uma pessoa que já havia passado por isso e que chamamos de 'acompanhanta'. Ela me orientou. Até porque, no dia da interrupção da gravidez, não te dão muita informação. Apenas dizem que vai sangrar, que você sentirá cólica, e é isso", conta Feliccia Cisneros, 32, antropóloga, que passou por um aborto legal na Cidade do México (leia a história na íntegra).

"São voluntárias que acompanham, virtualmente, mulheres que querem realizar uma interrupção. Quando tomei os comprimidos em casa, após voltar da clínica, fui contando para a minha acompanhanta cada coisa que acontecia, e ela ia me acalmando, dizendo que era assim mesmo e respondendo a todas as perguntas que fiz."

Feliccia conta que, depois da experiência com a interrupção da gravidez, decidiu também virar acompanhanta e ajudar outras mulheres que estavam passando por situação semelhante à dela. Em dois anos, ela já assistiu mais de 40 mulheres.

Foi importante para mim ter sido acompanhada naquele dia por uma pessoa que já havia passado por uma interrupção de gravidez. Infelizmente, esse tema ainda é tabu aqui. E, como você já está frustrada, brava, com medo e mil outras emoções, a última coisa que quer é enfrentar isso [ser maltratada].

Feliccia Cisneros, antropóloga

O aborto é legal na Cidade do México, para qualquer caso, até a 12ª semana de gestação, desde 2007. Se a gravidez tiver mais tempo, a interrupção é autorizada só em caso de estupro, risco para a saúde da mulher e alteração congênita do feto. Mas uma particularidade do México é que cada estado é regido pelo seu próprio código penal. Em apenas sete dos 31 estados mexicanos, além do Distrito Federal, o aborto é descriminalizado.

A Suprema Corte mexicana, no entanto, determinou que não será permitido processar as mulheres por abortarem. "Mas, na prática, não há clínicas específicas para a interrupção, e muitos médicos alegam objeção de consciência. Não existem mecanismos para que as mulheres tenham acesso ao aborto", lamenta Fanny González, fundadora do coletivo Aborto Legal México e promotora do grupo Aborteras en Red, que acompanha mulheres que querem interromper a gestação.

COLÔMBIA :: 'Profissionais não deveriam se manifestar a favor nem contra'

Quando descobriu que estava grávida, a assistente social P. A.*, 28 anos, que vive em Bogotá, procurou atendimento médico. Ela disse à enfermeira que a atendeu que estava em dúvida se manteria ou não a gravidez e se surpreendeu quando a profissional mencionou que ela tinha a opção de realizar a interrupção legalmente.

Fazia poucos dias que a Corte Constitucional da Colômbia havia decidido pela descriminalização do procedimento —o que aconteceu em fevereiro deste ano.

Ao decidir pelo aborto, no entanto, não recebeu o atendimento que esperava.

"Recebi uma ligação de uma pessoa da clínica onde eu faria a interrupção, mas a experiência foi terrível. A pessoa foi grosseira. Além disso, ela não me deu a opção de fazer em casa com comprimidos, que é um dos métodos disponíveis. Disse que seria interrupção cirúrgica, sem nem dizer no que consistia o procedimento. Quando perguntei como seria, ela disse que era melhor eu pensar e depois falar com o profissional no hospital. Senti que ela estava me julgando, foi muito ruim (leia aqui a íntegra do relato)."

Neste país, há pouco reconhecimento dos nossos direitos.

P. A., assistente social

P.A. pediu ajuda novamente à enfermeira que a havia atendido na primeira consulta. Por indicação dela, fez uma reclamação oficial do atendimento que havia recebido da atendente. "O que aconteceu para mim foi totalmente contra os direitos das mulheres. Os profissionais não deveriam manifestar posição nem a favor nem contra. Deveriam simplesmente oferecer um atendimento adequado."

A lei da Colômbia ainda é recente e está em implementação. O aborto foi descriminalizado até a 24ª semana de gestação e, depois disso, só pode ser realizado em casos de estupro, má-formação do feto incompatível com a vida e risco para a saúde da mãe -condições que já existiam no país desde 2006.

A decisão histórica foi tomada pela Corte Constitucional do país como resposta à petição apresentada em 2020 pelo movimento Causa Justa, que reúne dezenas de organizações feministas do país. O texto exige que o Executivo e o Congresso formulem e implementem, no menor tempo possível, uma "política pública integral que evite as amplas margens de desproteção para a dignidade e os direitos das mulheres gestantes".

Antes da lei, no entanto, muitas mulheres realizavam o procedimento pela condição de risco de saúde da mulher. "As mulheres conseguiam abortar quando havia uma interpretação adequada da lei: uma gravidez não desejada coloca em risco a saúde mental da mulher. Isso é baseado em evidência científica", explica Laura Gil, ginecologista colombiana do Grupo Médico pelo Direito a Decidir.

"Sempre pergunto às mulheres o que fariam caso não houvesse essa mudança na lei, e elas dizem que teriam abortado da mesma forma. Que teriam comprado os medicamentos pela internet, ou ido a algum lugar em que pudessem realizar o procedimento. As pessoas precisam entender que o fato de haver uma descriminalização não faz com que mais pessoas abortem. São as mesmas pessoas que abortariam de qualquer forma, mas que agora podem fazer isso de maneira digna e segura, como deve ser. Porque é um serviço de saúde, não um crime."

COMO FUNCIONA

BRASIL :: Uma carta

A exemplo do que aconteceu na Colômbia, o Brasil tem hoje uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal) pedindo a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A ministra Rosa Weber é a relatora.

Por meio de uma articulação entre a ONG Anis - Instituto de Bioética e o PSOL, foi proposta em março de 2017 uma ação questionando o Código Penal e a lei que criminaliza o aborto, argumentando que ela viola os direitos das mulheres. O pedido, que não era baseado em nenhum caso individual, era para que o tribunal concedesse de imediato, em favor de todas as mulheres, o direito de interromper gestação. Foi solicitada também a permissão para que profissionais de saúde pudessem realizar a intervenção.

Em novembro do mesmo ano, a então estudante Rebeca Mendes se tornou a primeira brasileira a requisitar na Justiça um aborto legal, mesmo sem se enquadrar em nenhuma das três condições que o Código Penal estabelece para liberar o procedimento: quando a gestação é decorrente de estupro, oferece risco de morte à gestante ou quando o feto tem anencefalia.

Rebeca decidiu, na ocasião, escrever uma carta endereçada à ministra Rosa Weber, falando de seu caso. O parecer, no entanto, foi de que não era possível decidir um caso individual dentro de uma ação abstrata —como são chamadas as ações que não se referem a nenhuma pessoa específica. Rebeca acabou abortando fora do país, na Colômbia. Hoje, virou símbolo da luta pela descriminalização no Brasil.

Sete em cada dez brasileiros defendem que a lei do aborto seja mantida ou ampliada, segundo pesquisa feita pelo Instituto Patrícia Galvão e pelo Instituto Locomotiva, que ouviu 2.000 pessoas, entre homens e mulheres maiores de 16 anos de todas as regiões do Brasil. O levantamento foi feito entre 27 de janeiro e 4 de fevereiro deste ano.

Hoje, o artigo 124 do Código Penal prevê detenção de um a três anos à mulher que realizar o procedimento em si mesma ou consentir que outra pessoa o faça. O artigo 126 estabelece prisão de um a quatro anos para quem provocar o aborto com o aval da grávida.

Desde 2017, dezenas de entidades manifestaram o desejo de serem ouvidas sobre o tema pelo STF —tanto a favor quanto contra. A votação em plenário ainda não foi marcada.

Para Debora Diniz, "a discussão é sobre o controle dos corpos das mulheres, não sobre aborto". "Falsas democracias perseguem mulheres. É sobre controle, patriarcado e autoritarismo. Onde há regimes autoritários, há tentativa de controle das mulheres."

*Os nomes foram preservados a pedido das entrevistadas.

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