Em família

Karla Felmanas, vice-presidente da farmacêutica Cimed, divide a liderança com irmão e prepara próxima geração

Marcelle Souza da Universa, em São Paulo Naira Mattia/UOL

Vice-presidente do Grupo Cimed, a terceira maior farmacêutica do país, Karla Marques Felmanas, 46 anos, diz que todas as decisões da empresa são tomadas "na base da conversa" com o irmão João Adibe, que preside o negócio. A regra foi estabelecida em 1977, quando o pai, João de Castro Marques, fundou a marca.

"Trabalhamos exatamente assim: se um quer uma coisa e o outro não quer, passamos uma semana em estratégia de convencimento", conta a executiva.

Há 29 anos na companhia, Karla até tentou traçar outros rumos. Cursou moda na faculdade, chegou a fundar uma confecção aos 17 anos em sociedade com uma amiga, mas acabou assumindo a cadeira no setor de produção da fábrica da família.

Agora, ela vê filhos e sobrinhos, todos na faixa dos 20 anos, percorrendo o mesmo caminho em diferentes áreas da Cimed. "Seguimos a mesma conduta que vivi. Nunca fui tratada como filha. Meu pai dizia que havia construído algo e deveríamos fazer ainda mais", lembra.

Mãe de três, por muitos anos, carregou uma culpa comum às mulheres. Já se questionou se estava fazendo a coisa certa quando deixou de acompanhar as crianças em compromissos. Por outro lado, mantinha uma rotina para levá-los na escola e dedicar a eles algumas horas depois que deixava a fábrica. "Eu trabalhava o dia inteiro e, quando chegava em casa às 18h, naquelas duas horinhas com os meus filhos, eu estava de verdade", afirma.

Na entrevista a seguir, ela relembra os passos até a liderança, compartilha como a empresa atravessou a pandemia e de que forma prepara a nova geração da família para assumir os negócios.

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Três lições para mulheres que querem liderar

Não espere estar 100% confiante para se candidatar à vaga que deseja

Lute contra a Síndrome da Impostora

Não fale uma coisa e tenha atitudes diferentes ou contrastantes

Seja um exemplo

Não acredite que a sua opinião é a única. Estimule que a equipe contribua com ideias

Incentive quem está do seu lado

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Seu pai, João de Castro Marques, fundou a Cimed em 1977. Você sempre quis trabalhar nos negócios da família?
Nunca me imaginei como dona de casa, mas também não pensei que fosse trabalhar na indústria. Gosto muito de moda, fiz faculdade e abri uma pequena confecção com uma amiga minha aos 17 anos. O mercado era muito difícil no Brasil, então abandonei e comecei a ajudar o meu pai na empresa. Passei pela expedição, manipulação, fui responsável pela produção, depois assumi a área de controle. Segui para o setor de compras, depois fui para recursos humanos e até tecnologia da informação. Meu crescimento profissional e o da Cimed caminharam juntos.

Como é trabalhar em uma empresa familiar? Como vocês resolvem os problemas?
Meu pai e minha mãe tinham um combinado que, se alguém não quisesse alguma coisa, o "não" prevaleceria. Cabia à pessoa que queria aquela definição convencer o outro. Fomos educados assim. Como a empresa era muito pequena, cada um foi cuidar de uma área, com as próprias responsabilidades. O meu pai ficava na parte financeira, o João Adibe ficava com vendas e marketing, eu ficava com produção. Há 12 anos, a minha mãe faleceu e a minha irmã foi morar na Austrália. Ficamos eu, meu pai e João Adibe. Hoje, eu e meu irmão comandamos a companhia e seguimos o mesmo protocolo: se um quer uma coisa e o outro não quer, é uma semana em estratégias de convencimento. Entendemos e confiamos muito um no outro. Então, se ele conhece mais do comercial e de vendas, respeito as decisões dele neste sentido, assim como ele respeita as minhas na parte de produção e de lançamentos de novos produtos.

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Você sempre esteve confortável no cargo de liderança?
Eu não caí de paraquedas na cadeira. Foram anos construindo essa posição, então para mim é muito tranquilo. Não sinto um peso de responsabilidade nem paro para pensar muito sobre isso.

Quais são as suas dicas para ser um bom líder? E para as mulheres que estão nesses cargos?
Acreditamos na liderança pelo exemplo. Não dá para falar uma coisa e agir de outra maneira. Também não tomo a minha opinião como a única. Um líder que acredita no seu time tem que fazer com que as pessoas participem, que tragam ideias, que se coloquem. Hoje, temos 38% de gestão feminina, número acima da média do mercado, mas estamos trabalhando para chegar aos 50%.

O que eu percebo é que as mulheres têm receio de se colocar nas possibilidades que se apresentam. Por exemplo, se há uma vaga que exige o inglês fluente na área de compras, noto que um homem se candidata, independentemente de falar o idioma ou não. Já a mulher, se não tiver o inglês fluentíssimo ou se tiver um sotaque, pensa que não está preparada. Falta esse despertar da própria força. Esses freios ainda existem, até porque sabemos que não o dia a dia corporativo não é esse mar de rosas. Apesar de dividir a companhia com o meu irmão, ainda tem alguns momentos em que ouço, percebo conversinha de homem. Em uma empresa que não tem uma presença feminina tão forte, como é a minha, é muito mais difícil para a mulher se impor.

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O mercado farmacêutico é machista?
A faculdade de farmácia é muito mais feminina do que masculina, então grande parte da indústria é tem lideranças femininas. Fica mais difícil quando você vai para áreas administrativas, financeiras e tecnológicas, embora a nossa participação esteja crescendo muito nesses espaços. Vou ainda a várias reuniões em que sou a única mulher, mas sempre me coloquei e reforcei que tenho competência para ocupar a cadeira em que eu estou.

Você disse que a empresa já tem 38% de mulheres nos cargos de liderança e que tem o objetivo de aumentar essa porcentagem. A Cimed adota alguma política específica de gênero?
Não, não temos. Eu acho que é uma conquista diária: cada vez que uma mulher assume um posto importante e se destaca, faz com que os outros pensem que está na hora de colocar uma mulher no cargo, porque é comprometida. Então retomamos aquela ideia da liderança pelo exemplo.

Quais são as suas referências profissionais e pessoais?
O meu irmão [João Adibe] me inspira muito, porque ele está em outro patamar. É alguém à frente de todo mundo, tem ideias diferentes. Sou o oposto dele, muito mais pé no chão, aquela que precisa ver para crer. Para o João Adibe, não existe a palavra "não", tudo na cabeça dele é possível acontecer. Eu sou a chata que diz "não", "você está louco". Ele também pondera muito as minhas decisões. Equilibramos o racional e o emocional.

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Qual foi o momento mais desafiador da sua carreira?
Foi quando aconteceu uma explosão na fábrica de Pouso Alegre (MG), em 2014. Havia estourado uma estufa. Eu não sabia qual era a magnitude do acidente. Liguei para o meu irmão, pegamos um helicóptero, pousamos na fábrica e, quando chegamos, ainda estava pegando fogo. A área que sofreu a explosão estava ao lado de uma caixa d 'água, então tínhamos pressão de água para conseguir apagar o fogo. Por outro lado, o foco estava perto de uma área com muito álcool armazenado, o que poderia ter aumentado as chamas. Felizmente, não aconteceu. Não dá para esquecer. Vimos os funcionários ajudando a apagar as labaredas, todo mundo contribuindo.

Como foi educar três filhos ocupando um cargo executivo?
Quem trabalha o dia todo em algum momento se questiona: será que eu estou fazendo a coisa certa? No meu círculo, 90% das minhas amigas não trabalhavam, mas eu era a única que levava os meus filhos para a aula. A gente tinha uma unidade fabril que começava às 5 da manhã, então às 7 eu já estava arrumada na porta da escola dos meus filhos. Trabalhava o dia inteiro e, quando chegava em casa às 18h, naquelas duas horinhas com eles, eu estava presente de verdade. Os meus filhos sempre foram com a babá para dentista, pediatra. Só acompanhava quando o bicho pegava. Então eles falavam: "nossa, se a minha mãe está indo, é porque eu estou morrendo". Eles também sempre foram muito independentes, se viram.

Eles estão entrando na empresa também. Como é ter a terceira geração da família trabalhando na Cimed?
Nunca fomos tratados como filhos na empresa -- e esse é um dos motivos pelos quais a parceria deu certo. Meu pai dizia: "se eu construí isso, vocês têm a obrigação de construir muito mais". O mesmo vale para os meus filhos. As portas estão abertas para eles. Deixamos que cresçam e oferecemos muita responsabilidade, cobramos muito. Não adianta querer que o seu filho entre na empresa, se você não permite que ele aja com autonomia. É óbvio que são diferentes da gente: mais jovens, nasceram e vivem em outro mundo.

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Quais são os seus planos agora? Onde você ainda quer chegar?
Profissionalmente, quero fazer a Cimed crescer, mas também desejo me dedicar à parte social. É uma coisa que eu sempre tive vontade, mas nunca tive disponibilidade. Sempre ajudamos financeiramente algumas instituições em Minas Gerais, mas quero contribuir com o meu trabalho, com o meu tempo, porque hoje eu tenho uma equipe que me permite delegar.

O que você gosta de fazer no seu tempo livre, quando você não está na empresa?
Eu gosto muito de ficar entre amigos. Para mim, são três coisas muito importantes: o meu trabalho, a minha família e os meus amigos. Eu adoro fazer atividade física: é um prazer e uma válvula de escape. Também pratico meditação há quatro anos. Para mim, ela é muito importante, porque sou agitada e tinha dificuldades de concentração. Acordo cedo, medito, faço ginástica, tomo banho e vou trabalhar. E, aos finais de semana, aproveito com pessoas queridas.

Se você não fosse executiva da indústria farmacêutica, o que você gostaria de fazer?
Adoraria ser compradora de grandes magazines, a "buyer". É a pessoa que vai aos desfiles de moda, senta na primeira fileira e escolhe tudo o que será vendido, o que há de mais novo. Não é fácil fazer grade de roupa, escolher o que o seu consumidor vai querer comprar. É difícil, mas eu acho que deve ser divertido também.

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