'Casados' com amigos: eles vivem o 'felizes para sempre' de outro jeito

Desde os 13 anos a escritora Mariana Salomão Carrara fantasiava o dia em que ela e a amiga Camila fossem morar juntas. "Quando viajávamos com meus pais para Santos, eu celebrava que, por uns dias, nunca ia chegar a hora de ela ir embora."

A fantasia virou realidade há um ano e dois meses, quando finalmente decidiram viver sob o mesmo teto. Ambas têm hoje 36 anos.

O detalhe é que a autora já vivia com Eduardo, 39, seu companheiro há uma década. "A Camila sempre frequentava nossa casa, viajava conosco, passava o dia todo com a gente para depois irmos a algum show, festa, peça de teatro. Nosso convívio sempre foi intenso."

Durante as obras na futura casa, que passou dois anos em reforma, o casal fez questão de adaptar um ambiente como um segundo dormitório para os amigos.

Alguns meses antes de a reforma acabar, o casamento da amiga chegou ao fim. O término foi amigável e carinhoso, conta a escritora, mas "ainda assim, seria natural que nesse período de despedida e melancolia nós a acolhêssemos na nossa sala".

O ano, então, virou, e eles fizeram a mudança a três.

O quartinho dela na casa nova fez tanto sentido que parecia que o espaço já sabia de tudo desde o começo. Até a cachorrinha dela veio se juntar aos nossos dois vira-latas. Está sendo, ouso dizer, a melhor fase da minha vida. Estamos morando juntos e acredito que essa tende a ser nossa realidade. Se não para sempre, pelo menos até que a casa fique pequena para algum projeto de vida de alguma de nós.

Nem trisal, nem roommate

Mariana, Camila e Eduardo não são um trisal. Nem são exatamente roommates, como os personagens de "Friends", menos ainda integrantes de alguma república estudantil.

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São exemplos do que, nos Estados Unidos, ganhou o nome de "PLP", acrônimo de Platonic Life Partners —ou, em uma tradução livre, "Parceiros de Vida Platônica".

No Brasil, o adjetivo "platônico" geralmente é associado a uma ideia de amor inalcançável. Mas, segundo uma definição do site Nova Acrópole, uma organização filosófica internacional, platônico é, na verdade, "o amor que torna possível o impossível e que nos faz sentir irmãos acima das diferenças".

O termo se popularizou desde que duas amigas de Cingapura, April Lee e Renne Wong, se mudaram para os Estados Unidos e decidiram não só viver juntas, como um casal que não tem relações sexuais, como também relatar a rotina em um perfil do TikTok com mais de 55 mil seguidores.

Elas gostam de dizer que não são apenas melhores amigas, mas parceiras em um projeto de longo prazo que envolve aspectos financeiros e apoio em seus objetivos de vida.

Função social das amizades

No Brasil, uma pesquisa Datafolha em parceria com a plataforma de aluguéis QuintoAndar apontou que 1% da população brasileira vive atualmente com amigos. O censo não permite discriminar quem, desse percentual, vive com amigos temporariamente e quem fez dos amigos parceiros de moradia para toda a vida.

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Não há pesquisas anteriores que possam ser usadas como comparação para falar em tendência. Mas, segundo a socióloga Bárbara Ribeiro da Silva, que em sua tese de doutorado pesquisou a função social das amizades duradouras, a pandemia pode ter sido um catalisador do fenômeno —que, por si, representa uma ruptura de tabus relacionados aos papéis de gênero.

No Brasil, o casamento ainda é uma instituição que se sobrepõe às diversas formas de convívio. A socióloga lembra que existem ainda estigmas relacionados às mulheres que não se casam. À medida que as mulheres se empoderam, explica a especialista, aumenta também o leque de escolhas: se querem se casar ou não e com quem pretendem viver.

Para ela, embora não seja considerada uma instituição ou arranjo familiar, a amizade duradoura é revolucionária porque quebra um ideal moderno de amor romântico segundo o qual só é possível ser feliz quando se encontra um parceiro sexual para toda a vida.

"Boa parte das pessoas não consegue conceber a ideia de amigos vivendo juntos", diz a especialista, que define amizades duradouras como uma relação do campo afetivo.

Amor entre amigos é amor mesmo, um sentimento de afeto a uma pessoa em quem você confia plenamente. Por isso é também um campo de ciúmes e outros sentimentos.

O próprio conceito de amizade, lembra, tem se transformado ao longo da história. Na Grécia Antiga, por exemplo, o amor entre os homens se desenvolvia no campo das amizades e as mulheres viviam apartadas da vida social. Já na Idade Média, a organização social por clãs levava amigos a matar ou morrer pelos amigos do grupo.

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Na sociedade contemporânea, amizade duradoura é uma relação que atravessa diversos momentos da vida —inclusive o casamento, geralmente um momento de ruptura entre amigos, sobretudo quando se trata da amizade entre homens e mulheres. O rompimento dos laços de amizade e familiares após o casamento é, inclusive, um dos portões de entrada para a violência conjugal contra mulheres, segundo a especialista.

"Não é todo mundo que consegue sair do ciclo de violência. Muitas mulheres, após a separação, encontram em amigos um papel de proteção, amparo psicológico, suporte emocional e até financeiro que deveriam ser responsabilidade também das políticas públicas."

'Acham que temos um caso'

Foi um caso de violência que levou o professor e publicitário de Goiânia Vinicius Seixo de Brito a se mudar para a casa de sua melhor amiga. Ela havia passado por um divórcio traumático em que o ex-marido tentou incendiar a casa onde moravam com o filho.

Em 2008, comecei a frequentar a casa para onde ela se mudou em um condomínio em Goiânia. Passei a dormir lá. O filho dela, à época com 8 anos de idade, começou a me tomar por figura paterna. Moramos nessa casa até o final de 2009, quando eles se mudaram para São Paulo. Voltei a dividir a casa com meus pais. Mas a casa dela na capital paulista tinha um espaço que era 'meu'.

Dez anos depois, novamente casada, a amiga se mudou para a Cidade de Goiás. "Fui para lá no início da quarentena para me isolar com ela, o novo marido e os filhos, e fiquei trabalhando em esquema de home office. Voltei a Goiânia só no começo de 2021. Viramos família. Uma família de amor. Em dezembro agora viajo com 'meu filho', que tem 23 anos, para o Japão. Temos planos de, no futuro, morarmos juntos novamente, quando estivermos velhinhos, para cuidarmos um do outro."

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Vinícius tem hoje 44 anos e a amiga, 52. "Sempre que pinta algum documentário sobre gente não consanguínea vivendo como família a gente assiste e adora. Desde a história dos Novos Baianos até do Dzi Croquettes. Fala-se tanto em relacionamentos líquidos e isso e aquilo, mas quando falamos de amizades, elas existem, sim. E são longevas."

Todo mundo acha que já temos um caso. A gente ri disso.

Parcerias de vida

Em países como EUA e na Grã-Bretanha, há registros de pessoas que decidiram viver juntas com amigos desde o fim do século 19.

"As parcerias de vida", segundo uma reportagem da BBC sobre o tema, eram vínculos comuns em localidades onde mulheres frequentavam a universidade e ingressavam no mercado de trabalho, tirando do casamento o lugar onde era garantido o sustento. Ou seja: as mulheres já não dependiam dos maridos para obter rendimentos e algumas optaram por viver com outras mulheres, conforme explicou a historiadora Lilian Faderman para a BBC.

Professor da Northwestern University Eli Finkel, outro especialista ouvido pela rede britânica, associa esse fenômeno à industrialização, que levou mais jovens para as cidades e os tornou independentes de suas famílias sob diversos aspectos. Foi esta liberdade, afirma Finkel, que deu origem à ênfase na "realização emocional" dos relacionamentos entre adultos.

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Amigos para sempre, na tristeza e na alegria

Marta Diogo e o amigo; eles moraram juntos por um tempo
Marta Diogo e o amigo; eles moraram juntos por um tempo Imagem: Arquivo pessoal

Para Marta Diogo, professora aposentada de 57 anos, morar com um amigo do trabalho foi antes uma solução do que uma escolha. Os pais do marido, com quem ela viveu por 25 anos, pediram de volta a casa após a morte do filho. Viúva, ela não tinha para onde ir e um amigo se sensibilizou com a situação.

"Ele estava saindo de uma relação homoafetiva de 14 anos e também procurava um lugar para morar. Depois de muita busca encontramos um apartamento no centro de Santo André. Eu estava em destroços, com muito medo de não dar certo. Mas foi uma das melhores decisões que tomei."

Em casa, Marta e o amigo fizeram acordos, combinaram que ninguém levaria namorados para lá e definiram qual seria a divisão das tarefas e contas, de aluguel e condomínio até as compras de supermercado.

Eles viveram juntos por quatro anos e descobriram inúmeras afinidades. "Fizemos cursos, saíamos para tomar café, íamos a shows e visitávamos outros amigos."

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Marta Diogo se mudou em novembro de 2021 para a Chapada Diamantina com um novo companheiro. O amigo se mudou para a casa da mãe, que precisa de cuidados. No dia em que deu este relato, o amigo de toda a vida passava os dias em sua nova casa. "Acabamos de chegar de um passeio na Cachoeira do Buracão!".

A experiência de morarem juntos durou alguns anos. Mas amor de amigo, atestam eles, é para sempre.

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