Em texto sobre assédio, Cremesp cita 'comportamento sedutor' da paciente

Uma cartilha do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) com o título "Ética em Ginecologia e Obstetrícia" menciona, em trecho sobre assédio sexual, o que classifica como "comportamento sedutor da paciente".

Conforme o texto, a mulher poderia sentir "desejo de vingança" provocado pela "decepção", a partir da relação com o profissional, "com consentimento ou até por iniciativa da própria" —caso "o ginecologista se deixe envolver pela ilusão" da mulher, ou ela, "pela ilusão do médico".

Publicada pela primeira vez em 2001 (e atualmente na quinta edição, de 2018), a cartilha está disponível para download nos sites do Cremesp (na aba "livros do Cremesp") e do CFM (em "publicações"), o Conselho Federal de Medicina.

Os trechos constam do capítulo 9, cujo título é "Assédio sexual e comportamentos inadequados na relação ginecologista-paciente".

Revisão prevista

Procurado pelo UOL, o Cremesp informou que "o texto está sendo revisto pela atual gestão" e a publicação "não é considerada um protocolo".

Para a advogada Marina Neiva Borba, professora de bioética e direito do curso de medicina e coordenadora do curso de direito do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo, alguns trechos da cartilha tratam como "desejo de vingança" o que, segundo ela, é direito da paciente: buscar justiça em casos de violência sexual.

Marina leu o texto a pedido do UOL e classificou-o como "machista, colocando a culpa do assédio sexual na mulher".

Para ela, o texto "deveria reforçar o caráter antiético de um contato sexual concomitante à relação médico-paciente", mas, em vez disso, "reforça o estereótipo da mulher fragilizada emocionalmente, infantilizando-a".

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Na avaliação da advogada, o texto também parece estar mais preocupado em fazer o profissional evitar a acusação de assédio do que o assédio em si.

Por sua vez, o médico Robinson Dias, da Febrasgo (Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia) afirma: "Não há nada no capítulo 9 de que necessitemos discordar".

Dias integra a Comissão de Violência Sexual e Interrupção da Gestação Prevista em Lei da instituição, que representa ginecologistas e obstetras do país.

'Fantasias amorosas'

O material orienta o profissional sobre como agir para evitar acusações de abuso sexual de pacientes. Recomenda que tenha "cuidado", caso perceba "dificuldade de resistir às maneiras sedutoras ou às fantasias amorosas da paciente".

Nesse caso, informa a publicação, "o médico está pronto para entrar rapidamente em uma situação típica de assédio sexual".

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"Vale a pena procurar por ajuda profissional adequada, antes que a responsabilidade criminal, cível e ético-profissional se concretize", orienta o texto.

'Médico ou artista de TV'

Na cartilha, o item "Comportamento inadequado da paciente" informa que pacientes podem ter fantasias com o médico —chamado de "o mito"— como resultado de "períodos de insatisfação afetiva ou sexual".

Diz que a paciente pode projetar no profissional a mesma fantasia que envolveria "artistas de cinema ou televisão".

"Com frequência, tais mulheres são vítimas rotineiras de homens reais (pai, marido, filho, amante, patrão) que as exploram sem dar retorno afetivo suficiente", informa a cartilha.

Resta a elas [pacientes] buscar satisfação afetiva na relação com personagens masculinos idealizados, como um artista de TV ou um médico, por exemplo
Cartilha Ética em Ginecologia e Obstetrícia, do Cremesp

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Recentemente, em Santos (SP), um médico acusado de abuso sexual —a paciente afirmou que, durante o exame ginecológico, ele fez sexo oral nela— alegou que a mulher estava em tratamento que aumentaria a sua libido e favoreceria a ocorrência de fantasias sexuais.

Disse também —o que a paciente nega— que ela se insinuou sexualmente para ele durante a consulta.

O processo contra o ginecologista foi arquivado no Cremesp e na esfera criminal, mas a juíza cível reconheceu o abuso e determinou o pagamento de R$ 25 mil à paciente por danos morais.

Sobre o caso, o Cremesp afirmou ao UOL que "as esferas são distintas, o Cremesp não tem acesso aos detalhes do processo na esfera cível e o processo também foi arquivado na esfera criminal".

Dor na relação

Em 2017, em Campinas (SP), uma paciente procurou seu ginecologista com queixa de dores durante as relações sexuais. "Ele me falou: 'Vamos fazer alguns testes'", diz. Então, segundo conta, ele começou a massagear seu clitóris até que, desconfortável, ela pediu que ele parasse.

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Ela e outra paciente, que também se disse vítima do médico, prestaram depoimento à Polícia Civil e ao Cremesp.

Em sua defesa, o médico alegou que elas haviam tido "compreensão inapropriada desta orientação e confusão quanto ao propósito da prescrição", do que chamou de "exercícios".

O Cremesp arquivou as denúncias. Como justificativa, mencionou que as pacientes foram curadas após as consultas. Também mencionou o currículo do denunciado, com "vários trabalhos publicados de sua autoria, anexados por ele próprio, em sua área de atuação, comprovando sua expertise no tema".

Em 27 de agosto de 2020, três anos depois, uma promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo em Campinas decidiu arquivar o processo.

Ela argumentou que, "em que pesem os relatos feitos pelas vítimas, se o próprio Conselho Regional de Medicina aprovou os procedimentos adotados pelo médico, entendo não haver elementos suficientes para a propositura da ação penal".

A vítima ainda se recorda daquele dia. "Na volta para casa, parei o carro em uma rodovia e chorei por vários minutos", diz.

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'Trechos infelizes'

A ginecologista Maria das Dores Nunes, integrante da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, analisou o capítulo sobre assédio sexual da cartilha a pedido da reportagem —ela desconhecia a publicação.

Maria das Dores definiu como "infelizes" os trechos do texto que mencionam "comportamento sedutor da paciente".

Generaliza a paciente como se ela estivesse procurando [uma relação com o médico]. Para mim, isso é fantasiado. É raríssimo uma mulher chegar ao médico tendo idealizado uma situação com ele

Maria das Dores Nunes, da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras

A médica, porém, elogiou os trechos iniciais do capítulo. No texto, lê-se que "o assédio sexual praticado por médico não só traz prejuízo individual à vítima, mas traz também prejuízo coletivo a todos os colegas profissionais por abalar a credibilidade e a respeitabilidade que sustentam o poder mítico e a autoridade moral da profissão médica".

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'Mínimo contato físico'

O texto orienta médicos a contar com a presença de acompanhante durante os exames ginecológicos e realizar "o mínimo de contato físico necessário para obter os dados indispensáveis para o diagnóstico e o tratamento".

Em 28 de novembro, o presidente Lula sancionou lei que amplia o direito da mulher de ter acompanhante em atendimentos nos serviços de saúde públicos e privados. Antes, era apenas no parto. Agora, o direito vale para consultas e exames.

Por meio de sua assessoria de imprensa, o CFM (Conselho Federal de Medicina), que recebe processos de todos os conselhos regionais de medicina no país, informou ao UOL que não dispõe de uma cartilha de ética direcionada a ginecologistas e obstetras ou a qualquer outra especialidade em específico.

Solicitada a comentar a cartilha do Cremesp, a instituição não retornou até a publicação desta reportagem.

'Viés ideológico'

O autor do capítulo sobre assédio sexual é o ginecologista e obstetra José Carlos Riechelmann, especialista em sexologia, psicologia médica e medicina psicossomática.

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Ele é um dos 19 autores do sexo masculino que participam da edição, ao lado de quatro mulheres.

Ao UOL, Riechelmann disse que tratou do assunto de maneira científica e se valeu dos estudos de Sigmund Freud —o criador da psicanálise— para mencionar a idealização "de pessoas que estão em posição de autoridade", como os médicos, de acordo com ele.

Para o autor, afirmar que o termo "comportamento sedutor da paciente" estigmatiza a mulher é ler o texto com "viés que mistura ideologia com conhecimento técnico da psicologia".

Não escrevi o texto como moralista que criticou as mulheres, mas como técnico que trata da possibilidade de um diagnóstico individual. Não estou dizendo que as mulheres seduzem os médicos. Isso é generalizar. Me refiro a casos pontuais em que pacientes tiveram atitude sedutora em relação a médicos. Isso existe.
José Carlos Riechelmann, autor do texto sobre assédio sexual na cartilha do Cremesp

José Carlos Riechelmann disse que, se o texto "abre portas para uma interpretação generalizante, como se a referência fosse a todas as mulheres do mundo", irá revisá-lo para a próxima edição.

"Reconheço que utilizei a linguagem de maneira imprecisa. O conhecimento continuará ali, mas com linguagem mais precisa", diz.

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