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Cirurgias mutiladoras marcaram a vida da 1ª deputada intersexo do país

Carolina Iara recebeu 259.771 votos pela Bancada Feminista em 2022 - Equipe da Bancada Feminista
Carolina Iara recebeu 259.771 votos pela Bancada Feminista em 2022 Imagem: Equipe da Bancada Feminista

Gabryella Garcia

Colaboração para Universa, em São Paulo

07/10/2022 12h11

Carolina Iara (PSOL) aprendeu desde muito cedo o peso de ser uma mulher intersexo: passou por três cirurgias de mutilação genital desde que nasceu, na zona leste paulistana na década de 1990, até os 12 anos. "Uma vez, quando eu tinha seis anos, estava chorando durante esse processo de cirurgias, e minha avó foi reclamar para o médico. Ele foi estúpido e gritou dizendo que dava muito trabalho produzir um negão e que negão não tinha que chorar por dor."

Aos 29 anos, ela acaba de se tornar a primeira deputada intersexo do Brasil. O termo se refere a pessoas que nascem com características sexuais que não se encaixam em categorias típicas do que é considerado feminino ou masculino.

Carolina foi eleita codeputada estadual pela Bancada Feminista, mas não estará ocupando a Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) apenas por ela. "Tem muita coisa ainda para ser realizada e eu posso fazer um percurso bonito, mas não é só para mim. Minha existência é importante sim, mas não se resume a mim e é por todas", diz, em entrevista a Universa.

Sua relação com a política e os movimentos sociais começou cedo. Carolina cresceu no bairro Fazenda da Juta, no distrito de Sapopemba, uma região que é originada da luta dos movimentos por moradias na década de 1980. "Sou filha dessa luta por moradia", afirma. Logo que nasceu também já conheceu a violência de gênero: passou por uma cirurgia mutiladora para esconder sua genitália ambígua e foi submetida a novos procedimentos aos seis e aos 12 anos de idade.

"Minha família tinha dúvida sobre meu gênero desde muito pequena e isso foi essencial na minha vida. Toda dor pela qual passei nesse período acabou se destinando às lutas sociais do bairro. Eu já estava muito inserida nesse ambiente", diz.

Aos 14 anos, Carolina entrou de fato para os movimentos sociais. Ao ver muitas pessoas da comunidade sempre participando das assembleias de bairro e se organizando para manter as casas construídas pelo movimento popular por moradia, ela começou a expandir a luta para outras pautas. "Começamos a organizar coletivos LGBTQIAP+ e fui me envolvendo nos movimentos sociais. Primeiro na cultura do bairro, depois LGBTQIAP+, feminismo, a luta contra a violência doméstica e pelos direitos humanos."

Também nessa época, com 15 anos, se identificou como travesti e conheceu na pele a violência destinada a essa parcela da população. A falta de políticas públicas que incentivem a inserção de pessoas trans e travestis no mercado de trabalho fez com que a agora codeputada experimentasse o trabalho sexual e decidisse interromper o seu processo de transição.

"Aos 15 anos comecei a vivência travesti e fiquei até os 18. Tive uma passagem pelo trabalho sexual na adolescência, mas acabei destransicionando aos 18 anos para conseguir um emprego. Fiquei anos com problemas psicológicos e escondendo quem eu era para manter um emprego."

'Descobri o HIV e pensei que morreria em 15 dias'

Carolina passou em um concurso na Secretaria de Saúde do município aos 18 anos e, ao se tornar servidora pública, pode enfim abandonar o trabalho sexual. Logo que foi aprovada, pediu para trabalhar com vítimas de violência doméstica e participou da estruturação do núcleo de combate a violência doméstica em São Paulo e passou a atuar dando assistência para vítimas de violência no Hospital Tatuapé.

O envolvimento com os movimentos feministas e de direitos humanos foi se intensificando, mas ela relata que também foi o único momento até hoje em que chegou a cogitar desistir de sua luta.

Quando me forcei a me disfarçar de gay e de menino aos 18 para me manter no emprego foi o momento em que desisti. Não queria voltar para a prostituição por uma série de violências, porque o trabalho sexual não é regulamentado e a gente precisa pensar sobre isso. Fui obrigada a negar minha identidade para conseguir renda e ali, de certo modo, desisti.

Em 2014, aos 22 anos, Carolina descobriu que vivia com HIV no próprio hospital onde trabalhava. "Fiquei com medo de morrer cedo e achava uma série de coisas ainda estigmatizadas da década de 80. Pensei que ia morrer em 15 dias e na verdade não é assim, embora o preconceito que vem daquela época ainda não tenha mudado."

Após a descoberta, ela ainda levou um ano até tornar sua sorologia pública, e recebeu muito acolhimento de sua mãe, Dona Gisa, que era técnica de enfermagem. A codeputada conta que esse apoio foi essencial para que ela conseguisse falar sem medo sobre a sua condição e militar pelos direitos de pessoas com HIV.

"Dona Gisa foi muito importante e facilitou muito minha vida com seu suporte e acolhimento. Hoje sou a única pessoa com HIV nos parlamentos, pelo menos a única que fala sobre isso. É um tabu muito grande e fiquei com medo, mas tive forças para expor minha sorologia como uma forma de militância e estar nos espaços de luta de pessoas vivendo com HIV. Fazer parte desse movimento e dos movimentos negro e feminista foi me preenchendo e me dando um sentido de existência."

'Somos sementes de Marielle'

A existência do corpo de uma mulher intersexo, negra, travesti e vivendo com HIV, por si só, representa um ato político. A entrada de Carolina Iara para a política institucional começou a acontecer em 2015. Há três anos ela já frequentava atividades de partidos de esquerda como o PSOL e o PSTU, mas uma situação específica a fez se filiar ao seu atual partido.

Carolina Iara quer manter legado de Marielle Franco vivo - Equipe da Bancada Feminista - Equipe da Bancada Feminista
Carolina Iara quer manter legado de Marielle Franco vivo
Imagem: Equipe da Bancada Feminista

"Em 2015 comecei a ficar muito preocupada com minha própria situação, era um momento preocupante e que desencadeou o golpe contra a Dilma em 2016. Fiquei muito angustiada e procurei pessoas que já conhecia para me filiar a um partido e militar dentro de uma organização partidária."

Somos sementes de Marielle e o legado que levo é essa luta incondicional por justiça, liberdade e direitos. Que as populações preta, LGBTQIAP+, pobre e todas que são perseguidas parem de morrer. Não queremos mais Marielles tombadas, queremos Marielles vivas.

A grande virada de chave, conta, veio em 2018, quando foi convidada a escrever o programa LGBTQIAP+ de Silvia Ferraro, que disputou uma vaga ao Senado por São Paulo naquele ano. Além disso, a morte de Marielle Franco, com quem mantinha uma relação pessoal, foi o combustível que faltava para entrar de cabeça na política institucional.

"Em 2018, depois da ressaca da vitória do Bolsonaro, e também de uma tristeza intensa pela morte de Marielle, a gente se juntou e começou a pensar em uma resposta coletiva não só dos movimentos sociais, mas também das instituições. A gente achou que se não ocupasse o parlamento não teria salvaguarda e foi aí que começou a nascer a Bancada Feminista."

Bancada Feminista

bancada - Bob Wolfenson - Bob Wolfenson
Integrantes da Bancada Feminista (PSOL)
Imagem: Bob Wolfenson

No final de 2019 Carolina se juntou a Silvia Ferraro, Paula Nunes, Dafne Sena e Natália Chaves para discutir um formato de candidatura coletiva e, com um sentimento de pertencimento, nasceu a Bancada Feminista. Com pautas como o enfrentamento a violência doméstica, segurança pública e a defesa das populações negra, indígena e LGBTQIAP+, o grupo disputou as eleições municipais de São Paulo em 2020, sendo a sétima candidatura mais votada para o cargo de vereador, com um total de 46.267 votos.

Carolina afirma a Universa que o grupo sempre busca levar pautas feministas para a sociedade, mas tendo em perspectiva as diferentes experiências e realidades de todas as mulheres. "Decidimos pautar o feminismo na sociedade e com uma travesti ocupando esse lugar enquanto feminista. Dizemos que o feminismo que queremos defender é popular e intersecciona classe, raça e gênero. Esse é o legado de feminismo que queremos trazer em forma de mandato."

Tendo lutado pela aprovação do auxílio emergencial municipal na pandemia, pelo enfrentamento a violência doméstica, educação e segurança pública na Câmara de São Paulo, o grupo viu a necessidade de expandir a atuação para o âmbito estadual. "O estado tem predominância na execução dessas ausências de direito", diz.

Ainda ao lado de Paula Nunes, Carolina Iara se juntou a a Simone Nascimento, Mariana Souza e Sirlene Maciel para formar uma nova Bancada Feminista e, com 259.771 votos, se tornou a terceira candidatura mais votada para a Alesp, passando a ocupar uma das 94 cadeiras a partir do próximo ano.

A codeputada assume um compromisso de trabalhar pela segurança pública, contra o genocídio da população negra, pelos territórios indígenas de São Paulo, por questões de moradia e ocupações e também ter um olhar ecossocialista para a questão do agronegócio no interior do estado em seu novo mandato. Ela também fala sobre o fato de ser uma das cinco parlamentares trans eleitas em 2022 e a primeira intersexo.

"É muito histórico e eu mesma não tenho dimensão do tamanho que é ser a primeira deputada intersexo da América Latina. Acho que tem uma dimensão enorme na luta intersexo e também na luta trans em ter cinco eleitas em 2022. Tem uma dimensão histórica importante, mas não podemos ser responsabilizadas sozinhas pela luta contra a transfobia e sermos abandonadas em uma luta solitária. É importante que nossa chegada nesses espaços de poder provoque uma responsabilização de outros grupos."

Sobre sua atuação na Alesp, um ambiente considerado conservador, Carolina pretende pautar debates que provoquem uma mobilização popular através de audiências públicas para levar proposições raciais e de gênero para a Casa, sem que sejam reduzidas a pautas de "menor importância". Mesmo nesse ambiente com muitas pessoas com ideias contrárias a suas lutas, ela pretende utilizar o diálogo, mas há um grupo com quem "não tem conversa".

"Não vou dialogar com quem acha que comunista tem que morrer ou que pessoas trans têm que morrer. Às vezes dá para dialogar, mas com a extrema-direita é difícil", finaliza.