Topo

Transforma

Mulheres protagonizam um mundo em evolução


Dom e Bruno: 'Vamos redobrar coragem', diz jornalista que mora na Amazônia

Katia Brasil, uma das fundadoras da agência Amazônia Real - Alberto César Araújo/Amazônia Real
Katia Brasil, uma das fundadoras da agência Amazônia Real Imagem: Alberto César Araújo/Amazônia Real

Rute Pina

De Universa, em São Paulo

16/06/2022 14h48

A jornalista Kátia Brasil mora há mais de 30 anos na Amazônia. Com a colega Elaíze Farias, as duas mulheres fundaram em 2013 a agência de notícias Amazônia Real, um dos mais importantes veículos jornalísticos que cobrem a região da floresta e investiga violações de direitos de povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos. O assassinato do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, na região do Vale do Javari, expôs a insegurança a que povos locais, ativistas e profissionais da imprensa que atuam na região estão submetidos.

Em entrevista a Universa, a jornalista afirma que a tragédia envolvendo colegas mostra que novos protocolos de segurança para atuar na região são necessários, mas afirma que o caso não pode amedrontar a cobertura faz no local. "Vamos redobrar nossa coragem", disse.

Confira os principais trechos da conversa com a jornalista.

Andamento das investigações

"As buscas das forças policiais começaram atrasadas, só depois de um clamor da Inglaterra e sociedade brasileira. Foram os indígenas que começaram as buscas duas horas que notaram o desparecimento. Eles conhecem muito bem o território, cada braço de rio e eles que obtiveram detalhes sobre o desaparecimento de Dom e Bruno. Mas na coletiva da Polícia Federal em Manaus, na noite desta quarta-feira (15), mais uma vez a voz dos povos indígenas foi desqualificada.

Esse desfecho do caso, com a convocação da coletiva de imprensa, acontece por falta de segurança da região, onde o narcotráfico é muito forte. Naquela coletiva, que foi vergonhosa, os agentes policiais quiseram prestar contas que investigaram, disseram que encontraram os suspeitos, encontraram os restos mortais — já numa situação de deterioração. Mas as provas já não estavam mais ali.

Ainda é necessário uma perícia muito grande, identificaram cinco pessoas envolvidas, mas quem é o mandante do crime? É preciso identificar os autores, os mandantes, para se fazer justiça de fato.

Eles quiseram dar um desfecho para jornalistas, que nem mesmo tiveram tempo de fazer perguntas incisivas e importantes. Fica uma sensação de desinformação muito séria. Mas o jornalismo não vai esperar a polícia — vamos continuar ouvindo lideranças indígenas, servidores e ex-funcionários da Funai [Fundação Nacional do índio], que alertam que essa situação não ocorre de hoje.

Em abril deste ano, publicamos um episódio em que mostramos que garimpeiros invadiram a terra indígena no Javari e obrigaram os indígenas a tomar cachaça, ali na região onde o Bruno trabalhava. Existe um histórico de denúncias. Mas cadê a Funai? Cadê o Estado brasileiro?

O governo só olha para os povos indígenas de três formas: os povos integrados, os de recente contato e isolados. Mas os indígenas nunca foram integrados pela sociedade, é mentira. Sempre foram vítima de preconceito, vítimas de racismo, alvos de assassinato.

Precisamos enxergar os indígenas como parte da nossa sociedade. Mas eles estão sendo assassinados. Foi Paulino Guajajara [morto na terra indígena Araribóia, no Maranhão, 2019], o Ari Uru-Eu-Wau-Wau [assassinado em 2020 no município de Jaru, em Rondônia], e vários outros. Até quando as lideranças vão continuar morrendo?

Segurança de jornalistas

"A fala de Bolsonaro, de que o jornalista e o indigenista foram aventureiros, é totalmente desrespeitosa, fria e calculista. Ele está administrando uma nação e um território onde o narcotráfico tomou conta.

Primeiro, é preciso reverter a forma como a Funai estabelece os protocolos para jornalistas para entrar em terras indígenas — eles exigem que a imprensa nacional e internacional solicite autorização, com a anuência dos povos indígenas, ao presidente do órgão - que, dependendo de quem, assina ou não.

Tivemos na Amazônia Real, por exemplo, uma autorização que demorou quase um ano ser concedida para visitar a terra dos indígenas Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul em 2016, durante o governo de Michel Temer. O então presidente da Funai era um pastor, Antônio Costa. Em 2015, ainda no governo Dilma Rousseff, o ex-presidente da Funai João Pedro Gonçalves também havia demorado a nos conceder uma autorização para visitar a terra Andirá Marau dos indígenas Sateré Mawé, em Barreirinha, no Amazonas.

No governo Bolsonaro, passamos a pedir anuência dos próprios indígenas. Eles passaram a também nos solicitar visitas aos territórios ameaçados. Em 2018, pedimos a licença para visitar o Vale do Javari. Houve também dificuldade na Funai.

Começamos a pedir nossas autorizações diretamente aos povos indígenas. Então, é preciso que as organizações de imprensa se juntem e analisem esses protocolos e comece a exigir protocolos diferentes.

Os povos indígenas também são comunicadores, que usam a mídia como um instrumento para divulgar a sua luta. Precisamos discutir novos métodos de segurança também por causa da pandemia para não levar doenças às populações isoladas.

As mortes de Dom e do Bruno vão ter, para gente, um significado. Vamos ter mais coragem, a gente vai redobrar nossa coragem não vamos desistir.

Temos regiões quilombolas, indígenas e de ribeirinhos onde a imprensa, de modo geral, nunca chegou ou pisou. Vamos continuar dando essa visibilidade a essas regiões e continuar com o trabalho investigativo, independentemente da pauta policial. Precisamos dessa cobrança e que as pessoas clamem por segurança nesta região."

Jornalista Dom Phillips e indigenista Bruno Araújo - Divulgação - Divulgação
Jornalista Dom Phillips e indigenista Bruno Araújo
Imagem: Divulgação

Sobreposição de crimes na Amazônia

"Se olharmos o mapa da Amazônia, existem vários problemas e houve vários assassinatos de indígenas recentemente. Ataques a tiro de caçadores, madeireiros, garimpeiros. Crimes que ninguém investigou ainda.

A questão do garimpo na terra indígena Yanomami é absurda e o Estado não deu aparato necessário para retire os garimpeiros. A contaminação é absurda que ocorre ali. Mulheres estão sendo contaminadas, o leite materno está sendo contaminado.

Por isso, temos os defensores da floresta, os ativistas, a exemplo do Bruno, e o Dom, que não era ativista, mas estava reportando e denunciando estes crimes com coragem."