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Indígena denunciou garimpo e agora se esconde de pistoleiros: 'Vivo presa'

Maria Leusa Munduruku com seu filho (no centro) na Caravana em Defesa do Rio Tapajós, em 2016 - Ana Mendes/Amazônia Real
Maria Leusa Munduruku com seu filho (no centro) na Caravana em Defesa do Rio Tapajós, em 2016 Imagem: Ana Mendes/Amazônia Real

De Universa, de São Paulo (SP)

17/03/2022 04h00Atualizada em 02/08/2022 18h04

Há um ano, o escritório da Associação de Mulheres Munduruku Wakobor?n, em Jacareacanga, no sudoeste do Pará, foi depredado e saqueado. Era o primeiro aviso. Dois meses depois, em maio de 2021, foi a vez da casa da liderança da entidade, Maria Leusa Munduruku, ser alvo de um incêndio. Ela não estava no local durante o incidente. Com medo do que poderia acontecer na sequência decidiu sair da aldeia e se mudar para um local distante, com a família. Hoje, mora em uma casa com cerca elétrica e câmeras de vigilância.

Os ataques foram atribuídos, pela Polícia Federal, a garimpeiros que agiram em represália a uma megaoperação do órgão contra a mineração ilegal na região. A denúncia para as autoridades vinha sendo feita por Leusa há algum tempo —ela é uma importante voz contra as atividades ilegais nas terras indígenas. Mãe de cinco filhos, o menor deles com dois anos, a ativista de 34 anos teve que mudar toda sua vida e rotina após os episódios.

Casa de Maria Leusa, líderança indígena do povo Munduruku, foi incendiada por garimpeiros no Pará - Divulgação/MPF - Divulgação/MPF
Casa de Maria Leusa, líderança indígena do povo Munduruku, foi incendiada por garimpeiros no Pará
Imagem: Divulgação/MPF

"Perdi minha liberdade de morar na minha aldeia. Quando saio para encontros da associação tem que ser com transporte próprio, não posso mais andar de transporte público. A gente vivia com alimentação nossa, tinha farinha, frutas, peixes, essas coisas. Está muito difícil até para sair para comprar alimentos, pois tenho medo. Agora, vivo presa."

Leusa afirma que a assessoria jurídica da associação tem cobrado do estado do Pará que garanta a segurança dela. Vez ou outra, por pressão da organização, a Polícia Militar faz rondas em torno da residência da ativista indígena.

"É a obrigação do governo garantir essa segurança para mim depois dos ataques. Mas também ficamos preocupados com outras lideranças, coordenadores de movimentos, e com o nosso cacique geral. Estamos cercados. Mas não vamos desistir de fazer o nosso papel, que é comunicar o que está acontecendo."

Universa entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará, que informou, após o prazo para enviar uma resposta à reportagem, que a ativista faz parte do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos e está sendo acompanhada pelo 15º Batalhão da Polícia Militar no município de Jacareacanga. A Delegacia Geral de Polícia Civil adotou as primeiras tratativas após o registro de ocorrência e remeteu o caso à Polícia Judiciária Federal. O texto foi atualizado.

Mesmo com o esquema de segurança e o novo endereço, sob sigilo, a ativista contou a Universa que as ameaças não cessaram. Segundo ela, áudios no WhatsApp circulam prometendo "vingança" pelas manifestações da liderança em rádios, cartas e em entrevistas contra o garimpo.

"Essas ameaças nunca pararam e continuam. Recebo ameaças de morte, mensagens dizendo que eu tenho que morrer. Sempre dizem que tenho que morrer porque estou atrapalhando ao denunciá-los. Eles dizem que somos culpados por operações da polícia de retirada de invasores de dentro dos territórios —sempre falam isso. E essas mensagens não vão parar porque nós vamos seguir à frente dessa resistência."

O Pará, segundo a CPT (Comissão Pastoral da Terra), é o estado com maior número de conflitos agrários do país. Das 1.576 ocorrências de conflitos por terra em 2020 no Brasil, 245 ocorrem no estado. Em 2019, houve 143 registros, o que representa um aumento de 71% em um ano. As ocorrências se referem a casos de homicídio, expulsão, despejo, ameaça de expulsão, ameaça de despejo, invasão, destruição de roças, casas e bens.

Impactos do garimpo

Na quarta-feira (9), a Câmara dos Deputados aprovou um requerimento de urgência para acelerar a tramitação do projeto de lei 191/2020, que permite e regulamenta mineração em terras indígenas. Agora, a proposta pode ser votada no plenário sem passar pelas comissões da casa.

O presidente da República, Jair Bolsonaro (PL) tem citado a guerra entre Rússia e Ucrânia para promover o projeto. O Brasil importa fertilizantes russos, e o fornecimento tende a ser afetado pelo conflito. Segundo o presidente, há jazidas de potássio (substância usada em fertilizantes) em terras indígenas.

Mas o garimpo, diz Leusa, tem afetado o modo de vida dos Munduruku e, principalmente, a vida das mulheres. "Ficamos muito tristes e revoltados. Sentimos a dor de perder nossos pés de açaí, nossos igarapés de onde tiramos a alimentação dos nossos filhos. A malária também está aumentando, nossas crianças estão ficando doentes. E o mercúrio: quem são as mais impactadas são as mulheres grávidas. O garimpo também está trazendo a bebida alcoólica para nossos filhos, prostituição dentro das aldeias, nas áreas de invasão."

Em 2017, a Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará) conduziu um estudo realizado com 45 gestantes atendidas pelo Hospital Municipal de Santarém, oeste do estado, em que detectou presença de mercúrio nos cabelos de todas. De acordo com a pesquisa, 37% das grávidas que participaram do levantamento apresentaram níveis de mercúrio acima do recomendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde). O consumo de peixes foi apontado como uma das causas da alta concentração de mercúrio. A substância pode causar uma série de problemas de desenvolvimento no feto.

Desde 2017, o MPF (Ministério Público Federal) alerta as autoridades sobre o aumento da invasão garimpeira ao território Munduruku. Em 2021, o órgão pediu à Justiça Federal para que forças federais fossem obrigadas a atuar com urgência para impedir ataques violentos de garimpeiros ilegais contra indígenas.

"Nossa vida é o nosso território. Não negociamos esse direito", diz Leusa.

Resistências das mulheres

Com todo o cenário de conflito, as indígenas Munduruku criaram, em fevereiro de 2018, a associação de mulheres para pensar em alternativas de economia sustentável para região. Elas comercializam produtos feitos em suas aldeias, como artesanato e pomadas. Hoje, são mais de 200 mulheres ligadas à entidade.

"A gente tomou essa decisão de criar a associação porque não havia uma organização própria. Queríamos uma organização para tomar a frente e apoiar os próprios projetos, sem depender de ninguém", explica. Leusa é uma liderança em sua aldeia desde os 15 anos.

Wakobor?n, a primeira guerreira Munduruku que dá nome ao grupo, conseguiu vingar a morte de um irmão. Também é a inspiração de Leusa, como mulher, para continuar com a luta mesmo sob ameaças.

"Como mulheres, nossa fala tem mais força, mais coragem. A gente consegue passar por todas essas dificuldades e isso começa já em casa, ao ter que educar nossos filhos e curar quem está doente", diz Leusa.

Neste ano, as mulheres Munduruku devem realizar a primeira assembleia desde o início da pandemia. O encontro deve reunir mais 2.000 mulheres indígenas.