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'Amaldiçoada por ser negra': plataforma reúne relatos sobre racismo

A plataforma Racismo à Brasileira está no ar há três meses. - Marcello Casal / Agência Brasil
A plataforma Racismo à Brasileira está no ar há três meses. Imagem: Marcello Casal / Agência Brasil

Agnes Sofia Guimarães e Vitória Régia Silva, da Gênero e Número

Colaboração para o UOL, do Rio de Janeiro

08/03/2022 11h49

Relatos de vivências cotidianas como perseguição de seguranças em estabelecimentos comerciais, negação ao acesso a algum serviço ou direito, ou constrangimentos relacionados ao fenótipo negroide, ou seja, uma característica que tende a se repetir em pessoas negras, se destacam na plataforma Racismo à Brasileira, no ar há três meses.

A iniciativa antirracista é da Gênero e Número e recolheu, até então, mais de uma centena de depoimentos que se configuram como racismo e injúria racial, previstos como crime no Código Penal, além de outras situações relacionadas à cor da pele, como preterimento amoroso.

Entre os depoimentos anônimos de mulheres negras à plataforma, chama a atenção o fato de que 95% dos episódios nunca foram denunciados. Cerca de 62% deles estão relacionados a situações de violência psicológica/moral e, em 55% o impacto emocional é o mais visível. Em cerca de 27% dos depoimentos das mulheres negras à plataforma, a principal sensação provocada pelo racismo é a de não pertencimento.

"Quando tinha uns 13 anos, estava conversando com meus amigos e, do nada, um amigo meu disse que Deus tinha me amaldiçoado porque me fez negra e mulher."

"Eu tinha 8 anos, fui para a escola usando tranças. Estava muito feliz porque, com tranças, o meu cabelo balançava. Mas sofri bullying dos colegas. Chorava muito e não queria ir mais pra escola. Era uma escola de classe média de Salvador, e eu era a única da sala de cabelo crespo. Durante muitos anos senti raiva do meu cabelo e até dos meus pais por isso. Só consegui usar meu cabelo natural aos 35 anos."

Dados plataforma Racismo à brasileira, da Gênero e Número. - Divulgação - Divulgação
Dados plataforma Racismo à brasileira, da Gênero e Número.
Imagem: Divulgação

Vulnerabilidade e violência

Ativista, educadora popular, coordenadora do Observatório da Saúde da População Negra (Nesp/Ceam-UnB) e professora na Plataforma Feminismos Plurais, Marjorie Chaves destaca que os relatos não podem ser lidos apenas como traumas individuais, mas como violências que refletem uma posição mais ampla do racismo na sociedade brasileira: o chamado racismo estrutural.

"É preciso considerar que o fato de serem mulheres negras as coloca no lugar de vulnerabilidade em relação à violência contra as mulheres, em desvantagem no acesso à justiça reprodutiva e na pouca participação na representação política", explica.

Outro ponto de atenção a partir das experiências das mulheres negras em relação ao racismo é observado pela psicóloga especializada em "psicologia preta" Celia Chagas. Segundo ela, como muitas vezes as agressões não são diretamente associadas a ofensas, xingamentos ou a questões de cor, muitas mulheres não conseguem reconhecer que estão passando por um episódio de racismo. Fato que, para ela, tem a ver com resquícios do período em que o conceito de democracia racial —que negava o racismo no Brasil— ainda era bastante difundido e defendido no país.

A ativista e coordenadora do Observatório da Saúde da População Negra, Marjorie Chaves. - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A ativista e coordenadora do Observatório da Saúde da População Negra (Nesp/Ceam-UnB), Marjorie Chaves.
Imagem: Arquivo pessoal

"A gente escuta desde a infância e a adolescência que todo mundo é igual e acaba crescendo achando que todo mundo vai ser lido como bonito, que não vamos ter problemas para arranjar um emprego ou casar. Mas aí, quando chega o momento de enfrentar o mercado de trabalho, de perceber que os padrões de beleza para uma marca não somos nós, começamos a sentir qual é o problema. E é nessas situações que há sempre quem diga que isso é um complexo, 'deixa disso, só basta se esforçar'. Mas sabemos que não é bem assim", afirma.

O contexto contribui para que, durante boa parte dos processos terapêuticos vivenciados por mulheres negras, explica ela, o primeiro passo de acolhimento delas seja aceitar que foram vítimas do racismo e que não estão apenas diante de uma intuição equivocada ou isolada.

"Qual é a nossa busca dentro da psicologia? Tratamos do autoconhecimento e confirmamos que não é uma impressão, mas uma questão social que de fato nos coloca em ambientes diferentes da nossa cor e que isso nos constrange", esclarece.

A promotora de Justiça Lívia Sant´Anna Vaz, do Ministério Público do Estado da Bahia. - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A promotora de Justiça Lívia Sant´Anna Vaz, do Ministério Público do Estado da Bahia.
Imagem: Arquivo pessoal

No entanto, a promotora de Justiça Lívia Sant'Anna Vaz, do Ministério Público da Bahia e reconhecida como uma das 100 pessoas de ascendência africana mais influentes do mundo (Mipad), pontua que o sistema de Justiça não colabora para que as mulheres se sintam mais confiantes em denunciar seus casos.

Para ela, o Judiciário é um sistema que desconhece a realidade que deve mudar, "produzindo aplicações parciais de Justiça, de liberdade, de igualdade". "Deveria ser um mecanismo de emancipação de todas as pessoas, mas tem servido de instrumento de manutenção do poder", diz.

No Rio de Janeiro, as mulheres negras são as maiores vítimas de injúria racial, segundo o "Dossiê Crimes Raciais", lançado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro em novembro de 2020. De acordo com o estudo, mais da metade das vítimas de racismo em 2019 foram mulheres (58,2%).

A psicóloga especializada em 'psicologia preta', Celia Chagas. - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A psicóloga especializada em 'psicologia preta', Celia Chagas.
Imagem: Arquivo pessoal

A socióloga Vilma Reis, 52, intelectual e militante do pensamento feminista e negro no Brasil, além de professora e doutoranda em Estudos Étnicos Africanos da UFBA (Universidade Federal da Bahia), explica que este dado pode refletir o fato de que as mulheres negras são o grupo que confronta diretamente o racismo todos os dias no país.

"É nesse confronto cotidiano que os ataques racistas vêm para cima da gente, porque colocamos o nosso black para cima, o turbante, a conta de orixá no pescoço e vamos para a universidade. Eles tentam nos asfixiar o tempo inteiro e, quando não conseguem mais tirar qualquer chance de nos impedir e boicotar no mundo do trabalho, na ida ao shopping, nós criamos nossos próprios espaços", enfatiza.

A socióloga Vilma Reis, 52 anos, professora e doutoranda em Estudos Étnicos Africanos da UFBA. - Rafael Martins - Rafael Martins
A socióloga Vilma Reis, 52 anos, professora e doutoranda em Estudos Étnicos Africanos da UFBA.
Imagem: Rafael Martins

Como denunciar um caso de racismo?

Casos de racismo e de injúria racial podem ser denunciados em delegacias especializadas neste tipo de violência, como a Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância). Em situações que acontecem na rua ou no ambiente de trabalho, é importante ter testemunhas.

Ligue 190 se o agressor puder ser pego em flagrante. O Disque 100 ou o Disque Denúncia da sua cidade também podem ser procurados.

Prints de mensagens ofensivas na internet e gravação de conversas racistas também são provas. Diante dessas situações, também procure se fortalecer. Na sua cidade, ou até mesmo pela internet, procure redes de afeto por meio de coletivos negros, fóruns e comunidades online de apoio.

Não sabe onde encontrar uma escuta antirracista? Olha aqui três dicas para você: