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"Filha, seus pais são gays": como famílias levam tema para a mesa de jantar

Gays, Silvana e Sergio decidiram ter juntos uma filha, Mônica - Arquivo pessoal
Gays, Silvana e Sergio decidiram ter juntos uma filha, Mônica Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Souto

De Universa

17/05/2020 04h00

Lésbica, Silvana Gonçalves, 48, teve sua filha dois anos após a criação do Dia Internacional Contra Homofobia, Transfobia e Bifobia, celebrado todo 17 de maio desde 2004. Foi nesta data, em 1990, que a Organização Mundial da Saúde reconheceu que se relacionar com alguém do mesmo sexo não é uma enfermidade, e retirou a homossexualidade da sua lista internacional de doença. O administrador Sergio Póvoa, 51, pai da filha de Silvana, também é gay.

A data é adotada em mais de 130 países, incluindo 37 nações que consideram o amor entre pessoas do mesmo sexo ilegal, segundo o site americano "May17.org". No Brasil, ela foi incluída no calendário oficial em 2010.

E, embora a luta contra a violência e discriminação sofridas por lésbicas, gays, transgêneros e todas as outras pessoas com orientações sexuais, identidades ou expressões de gênero e sexo diversos seja diária, a data vem para chamar a atenção para a situação de vulnerabilidade enfrentada pelo público LGBTQI+. Aqui no país, desde 2019 a homofobia e a transfobia são tipificadas da mesma forma que o racismo — ou seja, um crime hediondo, inafiançável e com pena de dois a cinco anos de prisão para o agressor.

Por isso, convocamos Silvana e mais dois pais gays, além de um hétero, o educador parental Thiago Queiroz, para contar como ensinam aos seus filhos a passarem por cima do preconceito — e também não o reproduzirem.

Gays, Silvana e Sergio são pais de Mônica, hoje com 14 anos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Gays, Silvana e Sergio são pais de Mônica, hoje com 14 anos
Imagem: Arquivo pessoal

"Papai e mamãe são gays"

"Eu me assumi homossexual à família aos 24 anos. Fui criada em Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo, sem muita informação, por uma família de classe média baixa, evangélica, e passei uma fase de bastante preconceito.

Lembro de ter visto duas mulheres se beijando dentro do ônibus e minha avó falando que era o fim do mundo. Fiquei com aquela imagem na cabeça.

Nunca tive traumas. Namorei homens e quase me casei aos 20. Estava montando casa quando comecei a visualizar meu futuro com um homem e cheia de filhos. Percebi que não era aquilo que queria.

Cancelei o casamento e saí de casa. Quando me assumi para a família, houve uma barreira. Minhas companheiras não eram bem tratadas de cara, mas aos poucos fui conquistando meu espaço. Sou casada há 11 anos e minha mãe apresenta minha companheira como nora.

Mas eu queria mais, e segui com o desejo de ter um filho

Primeiro, pensei em adotar, mas minha terapeuta me fez perceber que não é porque eu sou gay que não posso gerar. E o Sergio, que sempre foi um grande amigo, e gay, também queria ter um filho. Uma hora ele falou: 'Vamos?'.

Engravidei após duas tentativas de inseminação artificial, e vibramos muito desde o início.

Nós nunca nos apresentamos como casal. Em reuniões de escola onde a Mônica, nossa filha, estudava, eu já chegava falando: 'Sou Silvana, mãe da Mônica, e eu sou gay'. O pai dela fazia a mesma coisa. Hoje, ela tem 14 anos e aprendeu desde cedo a se defender exatamente por causa da minha postura e da postura do pai.

Entendemos que, se ela sofrer a desigualdade dentro de casa, não vai saber se defender na rua

Nunca teve um momento em que me assumi para a Mônica. O que nós fazíamos era questionar se ela estava sofrendo algum tipo de bullying na escola. Sei que tem pessoas que não fazem amizade com ela porque os pais são gays. Mas ela sempre soube se impor. E eu ensinava: 'Essa é sua família e você tem que ter orgulho dela'.

Medo de ataques preconceituosos tem, de todos os lados. O que posso dizer é que o preconceito é colocado. As crianças não vêm com ele. Eu e Sergio somos seres humanos ensinando a igualdade, a ser honesto respeitar e dar amor."

Silvana Gonçalves, 48, analista de recursos humanos

Ex-pastor, Wagner Pires se revelou gay quando os filhos ainda eram crianças - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ex-pastor, Wagner Pires se revelou gay quando os filhos ainda eram crianças
Imagem: Arquivo pessoal

"Sabe o Cláudio? Ele não é só um amigo do papai"

"Era pastor de uma igreja evangélica em Brasília, com 4 mil membros, e tenho um casal de filhos, com 31 e 27 anos.

Conheci minha ex-mulher quando estudamos teologia, aos 20 anos. Ela é pastora e, naquela época, já sabendo que eu gostava de homens, dizia que eu iria 'me curar'. Mas eu a amava e queria ser pai. Em 1985, você não via outro modelo de família. Achava que precisava me libertar, que era uma fase.

Me tornei pastor e as responsabilidades aumentaram, assim como meu desejo por homens, mas nunca tive vida dupla e jamais traí a minha ex. Só que, em 1995, não aguentei mais me segurar.

Um membro da igreja, médico e gay, me levou a uma boate. Não gostei, porque até então entendia a homossexualidade, não a homoafetividade. Beijar e acariciar outra pessoa do mesmo sexo, para mim, era impossível. Mas voltei na semana seguinte. Até que falei para mim mesmo: ok, vou assumir.

Chamei a ex, fizemos terapia, mas houve uma pressão enorme da igreja. Então resolvemos nos mudar para os EUA. Mas já não dormíamos juntos. Deixei de ser pastor e fui limpar casa, fazer bicos.

Quando a Priscila fez 12 anos, contei pra ela. Falei: 'Sabe o Cláudio, meu amigo? Então. Ele não é só amigo do papai'. E expliquei tudo

Mas minha filha já estava muito envolvida com a igreja também, e achava que Deus ia me mudar. Para piorar, a mãe falava que aquilo era 'coisa do capeta' e que eu ia destruir a vida emocional dos nossos filhos. Vivi, a partir de então, uma guerra diária.

A Priscila ficou um ano e meio me rejeitando, e só respondia de forma monossilábica. Sofri muito. Era mais perdoável, digamos assim, sob o contexto religioso, dizer que eu era traficante. Só consegui me libertar um pouco disso tudo depois da psicanálise. Minha terapeuta me ensinou que eu podia ser ex-marido, não ex-pai.

O diálogo foi muito difícil, mas só conseguimos reverter mostrando amor, e entendendo que a formação daquele filho estava moldada. Porque a criança não cresce odiando. Ela aprende a odiar.

Quando saiu o filme 'Brokeback Mountain' [que mostra o envolvimento de dois caubóis nos EUA], assisti quatro vezes num mesmo dia e chorava muito. Matheus já estava com quase 15 anos, então resolvi levá-lo para assistir.

Quando o filme terminou, o chamei para um café. E falei: 'Você viu aquela história? É a minha. Eu sou gay'. Ele deu uma gargalhada, mas depois perguntou se eu namorava alguém, e contei sobre o Cláudio. Então ele perguntou se esse ex-namorado o havia tocado quando ele era criança — pra você ter uma ideia da imagem que as crianças têm dos gays quando não se fala abertamente com elas. Mas ele aceitou numa boa.

Em 2007, decidi voltar para o Brasil e viver minha vida. Quando a Priscila fez 18, já afastada da igreja, veio morar comigo. Ela também se assumiu gay e está casada há sete anos com uma mulher.

Meu pai tem 84 anos e foi pastor. Os três filhos dele, incluindo eu, são gays. Um sobrinho meu também. E somos todos muito felizes. Meus pais têm muito orgulho da gente. Ninguém enlouqueceu, morreu ou matou. Quando a verdade vem, ela liberta."

Wagner Pires, 55, assessor parlamentar, de São Paulo

Bruno e Victor Vilas Boas contam como falam sobre famílias homoafetivas com o filho de 4 anos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Bruno e Victor Vilas Boas contam como falam sobre famílias homoafetivas com o filho de 4 anos
Imagem: Arquivo pessoal

"O que eu e meu marido fazemos é mostrar referências"

"Sou casado há 14 anos, e a gente tem um filho adotivo, de 4. Ele sabe que somos dois homens que se amam e se respeitam.

Vivi longe da minha mãe biológica, com meu pai. Ao reencontrá-la, aos 14, já cheguei contando que sou gay. Ela falava que eu ia apanhar na rua, ia sofrer por causa disso. Lembro de ter respondido que apanharia de um monte de gente na rua, mas, se ela não me aceitasse, seria a porrada mais dolorosa.

Quando você não aceita seu filho homossexual, está dando a primeira porrada, e é uma cicatriz que vai levar mais tempo para se curar

Sofri todas as formas de bullying e ameaças, principalmente do meu pai. Já cuspiram na gente na rua, com nosso filho junto, inclusive. E já nos negaram o aluguel de um apartamento por sermos gays. Até chegamos a planejar uma saída do país, mas estávamos no processo de adoção ainda.

Li um artigo apontando que a maioria dos meninos gays inicia sua vida afetiva e sexual em ambiente marginais, banheiros públicos, e o motivo é porque essa afetividade não é reconhecida em casa. Tive aluno de 15 anos que fez sexo oral num motorista por aplicativo. E eu e meu marido decidimos que nosso filho não passaria por isso.

O que nós fazemos é dar boas referências para ele. A que eu tive na infância foi o personagem escrachado da Vera Verão [drag queen do ator Jorge Lafond, morto em 2003, em 'A Praça é Nossa'], e também meu pai falando que matam os gays.

O primeiro beijo gay que presenciei foi o meu, aos 16 anos.

Então, quando a gente lê uma história em que tem um casal de girafas, por exemplo, a gente fala que são duas mamães ou dois papais. A gente ensina que a diversidade existe.

E nossos amigos vêm buscando fazer isso também. Eles mostram fotos do nosso casamento para o filho deles. Antes que pensem, é óbvio que ele não pergunta nada de sexo. O que nós conversamos é sobre famílias que têm papais e mamães, ou só uma mãe.

Aprendemos que se apresentamos a diversidade como algo normal, a criança entende assim. Se não falamos sobre o assunto, isso pode causar um espanto quando ela se deparar com o tema pela primeira vez."

Bruno Vilas Boas, professor, 34, de São Paulo

Palavra de especialista: "O ponto de partida é trabalhar a homofobia dentro da gente"

Thiago Queiroz é hétero e tem três filhos, de 7, 5 e 1 ano. Mas o educador parental e idealizador do site "Paizinho, Vírgula!" só entendeu que afeto não tem nada a ver com sexualidade após compor sua família, ele diz. Abaixo, seu depoimento:

"O ponto de partida é trabalhar a homofobia dentro da gente. Tive muito trabalho para entender que o que importa é o amor, porque a minha criação foi bastante tradicional, em que se acreditava que o homem não podia demonstrar amor. E eu reproduzi essas coisas.

Aí nasceu meu primeiro menino, e de repente o amava mais que tudo. Eu dava abraço nele, coisa que meu pai não fazia.

Dava selinho e comecei a me desconstruir, e fazê-lo ver também como algo natural, que existe afeto e ele nada tem a ver com sexualidade.

E começaram também a vir as referências e a construção de conhecimento em cima do que ele está vendo, como debater quando a gente vê, por exemplo, duas mulheres se beijando.

Claro que vou ter medo se meus filhos forem LGBTQI+, mas também terei medo com minha filha saindo na rua e alguém tentar abusar dela.

Ter filhos é ter medo, mas não se pode privar ninguém de ser o que é.

Está todo mundo olhando para o próprio umbigo. Se cada um ouvisse mais o outro, o que as pessoas têm a dizer, talvez conseguissem todos se encontrar no meio, por um bem comum."