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Cozinha comunitária em área pobre do RJ não teme só o vírus, mas a fome

Celi borrifa álcool nas mãos dos moradores antes da refeição - Fabiana Batista/UOL
Celi borrifa álcool nas mãos dos moradores antes da refeição Imagem: Fabiana Batista/UOL

Fabiana Batista

Colaboração para Universa

29/03/2020 04h00

Celi Gomes, 47, é técnica de enfermagem, mãe de seis filhos e moradora de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, há 26 anos. "Eu sou casada com o Jorge, 40, e mãe de seis filhos. A Nayra, 30, o Marcone, 24, a Thaila, 20, a Lailla, 16, o Juan, 15 e o Juninho, 14. Todos nós somos envolvidos com a cozinha, mas com este momento crítico de pandemia, apenas eu continuo circulando nas ruas", conta ela.

Celi é a principal referência em um projeto de cozinha comunitária do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto). Faz as compras dos alimentos, abre e fecha a associação aos domingos e organiza a chegada de doações feitas por apoiadores.

A reportagem acompanhou um domingo ao lado dela logo depois do anúncio dos primeiros casos de covid-19 no país. "A gente começou a entregar cestas básicas e criou grupos de Whatsapp para desmentir fake news sobre a pandemia, por isso as pessoas sempre vem falar comigo", diz Célia, depois de atender pacientemente uma série de moradores e suas dúvidas.

Cartazes na entrada da associação falam em prevenção contra o vírus - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Cartazes na entrada da associação falam em prevenção contra o vírus
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Em geral, aos domingos mais de duzentas pessoas se alimentam e participam de oficinas e rodas de conversa no almoço comunitário. Com lágrimas nos olhos, Celi diz que manter a cozinha a faz recordar das histórias da mãe. "Ela contava que passou muita fome e comia farinha com café para enganar o estômago. Quando estou aqui e ouço relatos parecidos, tenho certeza de que o projeto não pode acabar."

A janela que ventila a cozinha também é um dos balcões para apoiar as panelas com comidas prontas. "Hoje nós vamos fazer arroz, feijão carioquinha, frango, batata doce frita e salada de vagem com tomate. Você vai ficar para comer?", diz entusiasmada a cozinheira e também coordenadora Fátima Pereira, 54.

Celi relata que, por conta da pandemia, ainda não sabe se vai permanecer na clínica que acabou de ser contratada e que a instabilidade financeira preocupa mais do que uma possível contaminação.

"Do que eu mais tenho medo neste momento? Dos meus filhos passarem fome. O Jorge, que trabalha como pedreiro, teve a demanda diminuída e o Marconi está trabalhando apenas como motorista em viagens particulares."

Voluntárias preparam refeição dentro da associação, em São Gonçalo - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Voluntárias preparam refeição dentro da associação, em São Gonçalo
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Ela explica que o espaço continuará aberto no período de isolamento social: "As pessoas perguntam a semana toda sobre a cozinha, 'vai ter comida?'." No domingo anterior, conta, um senhor chorou quando comeu e justificou que aquela era a primeira refeição completa que teve em semanas.

"Ele disse: 'A senhora bota um pouquinho aqui no pote. Agora minha barriga tá cheia, mas mais tarde eu não vou ter o que comer de novo'. Naquele momento eu percebi que seria difícil fechar."

Para almoçar na cozinha é só chegar, trazendo prato, talheres e copo. No domingo em que Universa esteve lá, a refeição foi entregue na porta da associação em vasilhas descartáveis. Antes de pegar a comida, Celi borrifou álcool líquido na mãos das pessoas e explicou sobre prevenção contra coronavírus.

Todos foram orientados a voltarem às suas casas logo depois. Na semana anterior, além de comprar a comida necessária para o almoço, também entraram na lista álcool líquido, "que é mais barato que em gel", máscara, avental, touca e luvas.

Além disso, para evitar aglomerações, atividades que antes eram oferecidas antes ou depois do almoço foram paralisadas.

A receita para o almoço leva 15 quilos de arroz, 10 kg de feijão e 8 kg de frango. Além disso, Celi conta que o movimento ganhou cinquenta cestas básicas para serem entregues durante a semana e já tem destino.

"A solidariedade vai ser aliada do combate à pandemia, as pessoas continuam saindo de casa para trabalhar porque não têm escolha. Vamos fazer a nossa parte e garantir que pessoas ao nosso redor tenham o que comer em casa."