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Aluna de Direito com paralisia cerebral: inclusão escolar tem ajuda da mãe

Millena passou em vestibular concorrido e teve que brigar para manter-se no campus - Arquivo Pessoal
Millena passou em vestibular concorrido e teve que brigar para manter-se no campus Imagem: Arquivo Pessoal

Manuela Aquino

Colaboração para Universa

14/02/2020 04h00

Millena Silva de Moraes, de 21 anos, é aluna de Direito da Universidade de Brasília. Para chegar até aqui, ela e sua mãe, Jocília, de 38 anos, tiveram que lutar muito por inclusão escolar. Milena tem paralisia cerebral e precisa de ajuda constante em sala de aula para escrever. Suas provas devem ser adaptadas para que ela possa fazê-las de maneira oral.

Todo o suporte escolar necessário está previsto na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, de 2015. Depois de passar o ensino fundamental com dificuldades em sala de aula, ela encontrou inclusão no ensino médio, em uma escola estadual na Ceilândia, no Distrito Federal. Ali, nasceu o sonho de fazer faculdade.

Milena passou em um vestibular superconcorrido, na UnB (Universidade de Brasília), virou a primeira aluna de Direito com paralisia cerebral da instituição e tem companhia constante de sua mãe na sala de aula. Ela dividiu com Universa a batalha das duas para poder estudar:

"Moro no alojamento dos estudantes da Universidade de Brasília com minha mãe, Jocília, e minha irmã, Mireli. Vivemos bem, em um apartamento adaptado com toda estrutura e elevador para minha locomoção. Mas, para chegar aqui, a gente ralou.

Digo 'a gente' pois minha mãe é a peça-chave de tudo. Ela me acompanha em todas as aulas do curso de Direito, anota o conteúdo para mim e me ajuda a estudar lendo as matérias. É a pessoa que me ajudou a estar aqui hoje. Meu pai, como acontece em muitos casos de crianças que nascem com deficiência, abandonou a gente depois do nascimento.

Falta de crença no potencial

Nasci na Ceilândia, no Distrito Federal, em 8 de novembro de 1998. Tenho paralisia cerebral muito provavelmente por negligência médica no parto. Como minha mãe parou de trabalhar para cuidar de mim, a gente se mantém com o auxílio do governo para pessoas com deficiência, equivalente a um salário mínimo.

Preciso de apoio em atividades como colocar roupa, pentear o cabelo, e ela me leva para baixo e para cima nas terapias desde pequena. Uma verdadeira sombra, a gente brinca. Eu me locomovo em uma cadeira de rodas automática porque não tenho movimento de marcha nas pernas e tenho uma certa dificuldade de mexer as mãos, principalmente a esquerda.

Durante minha vida toda estudei em escola pública e de uma forma ou de outra sempre tive que lutar para que acreditassem em meu potencial de aprender. Arrumamos muitos embates durante a vida escolar. Alguns professores me ajudavam bastante, outros não.

No ensino fundamental foi tudo bem ruim, pois na escola em que fiquei não tinha nenhum apoio. Havia um monitor destinado a me ajudar, mas ele não ficava o tempo todo na sala, ao meu lado, como deveria ser. Muitas vezes achavam que eu não conseguia absorver o que era ensinado.

Já fui inúmeras vezes colocada num canto para pintar.

Eu não tinha como anotar o conteúdo dado, então minha mãe pegava o caderno dos colegas e passava tudo para mim.

Millena, que tem paralisia cerebral, ao passar no vestibular - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Na escola estadual em que frequentei o ensino médio as coisas começaram a mudar, eles tinham um núcleo de apoio. Ali, havia uma monitora ao meu lado, que me ajudava a escrever as matérias e também tinha reforço fora do horário de aula.

Estudar sempre foi muito importante para mim e convenci minha mãe a terminar os estudos dela. Ela precisava saber mais, sair daquela bolha em que vivia. Com ajuda do pessoal da escola, a gente descobriu o ENCCEJA [Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos] e ela conseguiu terminar o fundamental e o médio.

Aluna de Direito, sim

Meu sonho era fazer faculdade, mas nem a gente nem o pessoal da escola sabia como seria possível realizar o vestibular, por exemplo, e como funcionava o sistema de cotas. E eu descobri o PAS [Processo de Avaliação Seriada] para alunos como eu, em que as provas são feitas durante os três anos do médio.

Em 2015, pesquisamos e fizemos a inscrição. Ficamos esperando que entrassem em contato para confirmá-la. Minha mãe ligou na central e eles disseram que no edital estava escrito que precisava de relatórios médicos e que o prazo havia encerrado. Bateu um desespero, pois eu tinha que prestar naquele ano. Foi preciso entrar com uma ordem judicial para que minha inscrição fosse aceita e conseguimos. Fiz as três provas com ajuda e de maneira oral. A nota saiu em 2017 e, somando tudo, consegui entrar no que queria.

Passei em Direito na UnB. Mas aí começou mais uma batalha.

Eu e minha mãe precisávamos acordar às 3h da manhã para sair da casa às 5h e estar às 8h na faculdade. Como as matérias são espalhadas ao longo do dia, só voltávamos por volta das 7h da noite. Ficava muito cansativo.

No ano seguinte, conseguimos um lugar no apartamento dos estudantes e nos mudamos, mas depois vieram nos avisar que seríamos expulsas. Pelo regimento interno, criança não poderia morar lá — e havia minha irmã, com 11 anos na época.

Diante da situação, meus colegas se juntaram a mim e a gente fez protestos na frente da reitoria. Saímos nos jornais e conseguimos ficar lá.

Luta pela moradia

Morar no campus facilita minha vida e a vida da minha mãe, que me acompanha em todas as aulas e precisa cuidar da minha irmã — ela estuda meio período. Minha mãe copia tudo para mim, lê os livros em voz alta para que eu assimile tudinho. Fazemos resumos e isso ajuda nas provas. Eu costumo dizer que ela é o corpo e eu sou a cabeça. Todas as avaliações faço de maneira oral, porque para mim é mais tranquilo.

Minha primeira ideia era me tornar delegada, mas tudo mudou quando eu tive aula de medicina legal. Estou no quinto ano de Direito, término em 2022, e já penso em fazer medicina. Quero trabalhar no Instituto Médico Legal.

Assim que acabar aqui, vou estudar para prestar o vestibular. Já conto com o apoio da minha mãe para mais essa aventura. Ela me disse que fará tudo para que eu realize todos os meus sonhos.

Entrar para a faculdade foi um divisor de águas para mim: uma menina da periferia estar em uma da maiores faculdades do país é algo que me trouxe uma bagagem incrível.

Aqui, passei a ter acesso a muito conhecimento — e conhecimento é tudo na vida. Não quero parar nunca de estudar."