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Quero que o meu corpo sirva como motor de revolta, diz Linn da Quebrada

Marie Rouge/Divulgação
Imagem: Marie Rouge/Divulgação

Carlos Minuano

Colaboração para Universa

01/12/2019 04h00Atualizada em 01/12/2019 16h18

Bicha e travesti, como ela própria se define, a cantora, compositora, atriz e performer, Linn da Quebrada se tornou símbolo da margem mais radical e provocadora do ativismo trans. "Um movimento de corpos desobedientes", afirma a artista que alcança cada vez mais visibilidade com seu trabalho.

Além do papel na série "Segunda Chamada", da TV Globo, e do programa TransMissão, no Canal Brasil, ela brilha também no cinema. O documentário "Bixa Travesty" que acompanha sua vida e shows, está em cartaz em 11 salas de sete estados brasileiros com preços populares (R$ 12 e R$ 6). Ao mesmo tempo, Linn prepara seu segundo disco, "Trava Línguas", que será lançado em 2020.

Em entrevista a Universa, Linn declara não se sentir confortável com esse lugar de representação. "Sou uma travesti em movimento e não do movimento". Na sua opinião, a representatividade pode ser perigosa por várias razões. "Somos muitas e diversas", observa.

Aos 29 e com a carreira bombando, está feliz. Mas, lamenta ser ainda uma exceção. "A grande maioria das travestis continua marginalizada, sem necessidades básicas atendidas. Como posso representar essas pessoas?".

Pré-estreia em SP de "Bixa Travesty"

Reluzente e com ares de diva, a artista fez tantas selfies quanto foi possível na noite da concorrida pré-estreia do seu filme em São Paulo. O longa "Bixa Travesty", dirigido por Claudia Priscila e Kiko Goifman, teve uma sessão gratuita na última quarta-feira, 20, Dia da Consciência Negra. A reportagem da Universa esperou quase uma hora para entrevistar Linn. Pela quantidade de pessoas enfileiradas para conferir o documentário e tentar uma fotinho com ela, até que foi rápido.

Produzido pelo Canal Brasil, o filme já ganhou cerca de duas dezenas de prêmios pelo mundo. Entre eles, o de melhor documentário no Teddy Award, premiação gay do Festival de Berlim, melhor direção no Festival de Cartagena, e o de melhor longa do júri popular e melhor trilha sonora no Festival de Brasília.

Linn da Quebrada em Segunda Chamada - Globo/Mauricio Fidalgo - Globo/Mauricio Fidalgo
Linn da Quebrada na série Segunda Chamada
Imagem: Globo/Mauricio Fidalgo

Uma referência importante no universo LGBT? Sim, concorda, e até gosta, claro, mas despreza o posto de guru. Prefere a postura ativista, instigadora, que estimule os outros a se movimentarem. "As pessoas precisam se sentir menos confortáveis", argumenta.

Quero que o meu corpo sirva como motor de revolta contra as péssimas condições de vida que a população trans em geral enfrenta

Ela teme ficar reclusa na imagem de ícone trans e reclama não querer compromissos de fidelidade, nem com os discursos da travestilidade ou da transgeneridade. "Quero falar de outras coisas também."

Foi o que experimentou recentemente no programa de entrevistas "TransMissão", do Canal Brasil, que apresenta com a amiga Jup do Bairro. "Falamos de vários assuntos, como culinária, por exemplo."

Especial - Linn da Quebrada (capa) - Gabo Morales/UOL - Gabo Morales/UOL
Imagem: Gabo Morales/UOL

A primeira temporada do programa, com 26 episódios, também dirigido pelo casal de diretores Claudia Priscila e Kiko Goifman, encerrou há poucos dias, mas será reprisada a partir desta semana, na mesma faixa de horário, de terça para quarta, a meia-noite.

"Estamos vencendo", diz ela

Questionada sobre a realidade das pessoas trans nas regiões periféricas, a artista, nascida na periferia da zona leste paulistana, e que carrega a quebrada no nome, não foge à luta e parte para cima. "É necessário inventarmos um novo imaginário social, a imagem das travestis continua marginalizada. Há uma diversidade muito rica nas periferias, com poder e criatividade", diz ela. "São pessoas guerreiras que lutam pela própria dignidade, interrompida por viverem em um território preterido pelo estado."

A ocupação por pessoas trans de cada vez mais espaços de poder em todos os lugares é uma amostra inegável de que o jogo virou, analisa a cantora. "Estamos vencendo e evidentemente isso incomoda."

O tom combativo aumenta em alguns graus. Linn dispara o verbo contra a "masculinidade nociva, tóxica", responsável pela imposição de um "padrão cisheteronormativo branco colonizador", algo como uma "ditadura hétero" que, em sua avaliação, encontra-se ameaçada.

E dá de ombros para a onda conservadora que avança por todo a parte, inclusive no Brasil. "O velho mundo acabou, a família como foi constituída está arruinada, estamos propondo e inventando novos modelos", rebate com desprezo.

Sobre as dificuldades com o atual governo do presidente Jair Bolsonaro, que já suspendeu até um edital de filmes com temática LGBT, não recua. "É uma estratégia antiga, querem nos fazer sentir medo, vão tentar de todas as maneiras limar nossas potências."

Porém, as ameaças à liberdade de expressão artística estão ocorrendo de fato e já chegaram aos palcos. Há poucos meses, Linn teve uma apresentação vetada em João Pessoa justamente, por ironia, na Parada da Orgulho LGBT. A "censura", diferentemente do que foi divulgado na ocasião, conta ela, não veio da prefeitura local, mas da própria organização do evento."Disseram que nossa linguagem era muito pejorativa e desapropriada para aquele momento."

O jeito é seguir na resistência. E foi o que aconteceu. As travestis da região se juntaram e conseguiram os recursos para que o show fosse realizado, o que ocorreu há poucos dias. Para enfrentar o atual caos na política será necessário abandonar o discurso do amor, sugere Linn. "É hora de nos revoltarmos. A raiva é um bom motor para começarmos algo novo, eu continuarei usando o meu corpo como arma."