Proibir debate de gênero em escolas fere Lei Maria da Penha, dizem juristas
Especialistas em direitos das mulheres consideram a possível proibição da discussão sobre gênero nas escolas, anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro na terça-feira (3), uma afronta à Lei Maria da Penha, que determina a criação de programas educacionais sobre o tema.
Bolsonaro disse, pelo Twitter, que solicitou ao MEC (Ministério da Educação) a elaboração de um projeto de lei proibindo o que chama de "ideologia de gênero" no ensino fundamental. O presidente, no entanto, não especificou o que seria considerado um conteúdo inadequado. O termo ideologia de gênero, que não é reconhecido como uma linha de estudo no meio acadêmico nem consta em currículos escolares, é usado por movimentos políticos de direita para se referir, principalmente, a debates sobre educação sexual, diversidade sexual, identidade de gênero e transexualidade.
Mas o guarda-chuva da teoria de gênero abarca, também, discussões sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, o entendimento dos papéis sociais de cada um (como o mito da fragilidade e da submissão feminina) e como, por causa desses papéis, a mulher está vulnerável à violência machista.
A Lei Maria da Penha, de 2006, considerada a terceira melhor legislação sobre violência doméstica do mundo, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), cria mecanismos para prevenir e coibir a violência familiar contra a mulher, mas também orienta a criação de programas educacionais "que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero" como uma maneira de prevenir agressões e abusos.
"Há uma previsão explícita [na lei] para que currículos escolares de todos os níveis de ensino destaquem a equidade de gênero. Falar sobre o tema em sala de aula significa cumprir a lei", diz a promotora Valéria Scarance, do Ministério Público de São Paulo, autora do livro "Lei Maria da Penha: o Processo Penal no Caminho da Efetividade". "Proibir discussões como essa contribui para a intolerância contra mulheres, homossexuais e transexuais."
Para Crislei de Oliveira Custódio, doutora em educação pela USP (Universidade de São Paulo) e integrante do projeto Respeitar É Preciso, do Instituto Vladimir Herzog, a escola tem obrigação de questionar o machismo. "É o espaço de formação do sujeito e não só em relação a disciplinas tradicionais, mas também sobre princípios e valores, públicos e democráticos, que enfatizem a potência da diferença entre as pessoas e mostrem que meninas e meninos são igualmente competentes para fazer o que quiserem."
Cruzada contra "ideologia de gênero"
Bolsonaro fez a postagem após a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, publicar em outra rede social um trecho de um livro didático de uma escola de São Paulo que falava sobre identidade de gênero.
Após a publicação, o governador de São Paulo, João Doria, decidiu retirar de circulação o livro didático em questão, destinado a alunos do 8º ano da rede estadual. "Não concordamos e nem aceitamos apologia à ideologia de gênero", disse, pelo Twitter. Na sequência, Bolsonaro também falou sobre o tema em sua rede social. Como ambos são considerados pré-candidatos na corrida presidencial de 2022, as ações têm sido vistas como estratégicas para conquistar o eleitorado que acredita estar em curso uma instauração da "ideologia de gênero".
O Ministério Público de São Paulo abriu inquérito, na quarta-feira (4), para apurar a decisão de Doria de recolher a apostila, considerando a justificativa "frágil" e alegando "violação ao direito à educação em seu amplo alcance constitucional".
Proibição é inconstitucional
Segundo a advogada Gabriela de Souza, do escritório Advocacia para Mulheres, de Porto Alegre, especialista em violência contra a mulher, a proibição do debate sobre gênero nas escolas, além de ferir a Lei Maria da Penha, é inconstitucional. "Vários projetos de lei municipais que seguem a mesma linha foram criados, mas todos estão sendo derrubados porque ferem o direito constitucional da educação", afirma Gabriela.
Na opinião da advogada, mesmo que o projeto de lei seja criado e chegue a ser aprovado no Congresso e sancionado pelo presidente, o STF (Supremo Tribunal Federal) provavelmente derrubaria a lei alegando inconstitucionalidade.
"Além disso, a Constituição também fala de igualdade de gênero. Como promover isso caso o termo seja proibido nas escolas? A mensagem passada vai ser a de que é errado contestar o padrão do que é ser homem e do que é ser mulher. E vamos ver mais crianças pensando que é errado serem quem são por não se adequarem a esses padrões."
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